O governo petista tem sido muito ingrato com Eduardo Cunha. De março até dezembro de 2015, os pedidos de impeachment oriundos dos mais variados cantos do país faziam fila no protocolo da Câmara. Enquanto a nação se alvoroçava, movida a estelionato eleitoral e Lava-Jato, o presidente da Casa, como bom vendeiro, usou aquela munição para negociar proteção a si mesmo, em especial na Comissão de Ética. Houve um período - vejam só - em que os três deputados do PT naquele nobre colegiado ajudaram Cunha, ausentando-se para que as reuniões não tivessem quórum. Apenas quando se viu perdido, em 2 de dezembro, muito a contragosto, o deputado retirou da pilha o requerimento que hoje segue curso constitucional no Congresso.
Esse prazo proporcionado pelos cambalachos do presidente da Câmara deveria ter sido entendido como de fato era: uma dádiva em meio ao infortúnio. Bem usado, cada dia desses meses valia mais do que uma boca livre no Piantella para toda a bancada. De fato, a deliberada morosidade de Cunha proporcionou ao PT e ao governo tempo para mudar rumos, desculpar-se, curar-se e abandonar a arrogância tão presunçosa quanto vazia. O partido poderia emitir sinais de arrependimento, reconhecendo seus erros. Livrar-se dos corruptos expurgando as más companhias internas e externas. Admitir a má condução da política econômica e dar adeus definitivo à irresponsabilidade fiscal. Poderia entender que vitória eleitoral não é credencial para apropriação do Estado.
Todas essas condutas e atitudes implicam sofrimento moral. Mas todas são muito mais saudáveis e menos ofensivas à razão e ao eleitorado do que fazer de conta que os males não existiram e que os crimes não foram cometidos. Irrecuperavelmente danoso é chamar corruptos de heróis do povo brasileiro; é louvar criminosos e acusar o juiz; é condenar o vazamento e silenciar sobre o que vazou; é repetir sandices como a de que criticar o governo é coisa de quem não gosta de ver pobre dentro de avião; é afirmar, à exaustão de toda paciência, que partido e governo são vítimas de conspiração promovida por meia dúzia de golpistas; é excitar ânimos e conclamar milícias ao uso da violência; é comprar da freguesia apoio parlamentar por lote e cabeça; é esperar que sujeiras pretéritas encubram as atuais; é crer que denunciar o passado suscite mais interesse do que retificar o presente e o futuro.
Ambos, partido e governo escolheram persistir nos mesmos erros e usaram contra si mesmos o valioso tempo de que dispuseram. Quando perceberam que o entusiasmo esfriara, reduzindo o porte das manifestações populares, cometeram o erro de atiçá-las com arrogante menosprezo. A mídia amiga, fazendo coro, contava cabeças, dividia pelo número de pés e tocava flauta. Consequência? No mês passado, os 3 milhões de 2015 viraram 6 milhões. E foi o que se viu. Ante a invencível e pacífica multidão que tomou as ruas do país, as instituições, até então catatônicas, boquiabriram-se. E começaram a cumprir seu dever de casa.
Eis por que soa tão falsa a tentativa de transformar o impeachment numa manobra do corrupto Cunha e de supostos golpistas. Na velha técnica da incessante repetição, essa falsidade compareceu, estridente, a centenas de pronunciamentos no plenário da comissão especial de impeachment e se reitera nos abusivos comícios palacianos da presidente! Não é preciso deixar de ser desinformado e tolo para saber que o grito por impeachment nasceu nas ruas e nas redes sociais. Se eventualmente algum pedido formal teve origem na pachorra das bancadas oposicionistas, não prosperou. Portanto, toda tentativa de retirar de foco a inédita mobilização nacional, para centrá-lo na malemolência dos políticos oposicionistas é um agravo à nação. O povo não é nem poderia ser golpista.
Escrevo este artigo 48 horas antes de chegar ao leitor. Dois dias, neste início de outono brasileiro, é muito tempo. Tempo foi, então, o meu assunto. Em vão o PT dispôs de um ano inteiro para mudar. Giram agora os ponteiros do relógio marcando as horas para quem, incorrigível, nada tem a apresentar, exceto um pouco mais do mesmo.
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