Quando o ministro Marco Aurélio Mello, entrevistado no programa Roda Viva, fortemente pressionado por José Nêumanne, indagou-lhe se não confiava no STF, desde minha poltrona respondi com o jornalista: "Não, não confio!"
E por que não? Porque muito mais vezes do que minha tolerância se dispõe a aceitar, assisti o STF legislar contra a Constituição e invadir competência do Congresso Nacional. Sempre que isso aconteceu, a maioria que se formou despendeu boa parte de seu tempo afirmando não estar fazendo o que à vista de todos fazia. Ademais, como conceder a confiança que o ministro esperava colher depois de o STF, na ação penal referente ao mensalão, haver decidido que nele não ocorreu crime de formação de quadrilha? Vinte e cinco condenações envolvendo três núcleos interconectados não compunham uma quadrilha? Como cortejar um ponto tão fora da curva?
Como esquecer o ministro Joaquim Barbosa, com seu linguajar ríspido, reprovando o que via acontecer nas sessões finais daquele julgamento? Recordo sua advertência sobre a "maioria de circunstância" e "sanha reformadora". Pergunto: não ficam nítidos, em certas entrevistas concedidas por alguns senhores ministros, os desapreços internos? Nêumanne não está só.
Ao estabelecer que o provimento das cadeiras da Suprema Corte se dê por nomeação da presidência da República após aprovação da escolha pelo Senado, nossos constituintes confiaram em que o natural rodízio das tendências nas eleições presidenciais permitiria um equilíbrio das orientações jurídicas e sensibilidades políticas dentro do STF. Tal presunção foi rompida com a sequência de quatro governos petistas, que indicaram oito dos 11 ministros. Numa democracia, seria muito saudável que o Supremo, em sua composição, exprimisse equilibradamente o espectro dessas sensibilidades presentes e atuantes na vida social. Não parece razoável que na prática, a posição conservadora ou liberal ali só se manifeste no microfone de onde, suplicantes, falam advogados e amigos da corte. Nunca no plenário. Nunca com direito a voto.
Não bastasse isso, nos últimos meses, relevantes figuras da República têm manifestado dispor de uma intimidade, que vai além de todo limite, com membros do poder situado no outro lado da praça. O governo contabiliza votos na corte como se fossem seus. Ministros opinam sobre assuntos em deliberação no Congresso Nacional. Divergem publicamente sobre questões cruciais do momento político. Onde buscar razões para a ambicionada confiança?
Há mais. A nação tem imensa dificuldade de entender como podem tantos processos dormir, tirar férias, entrar em remanso e envelhecer nas prateleiras do STF. Num país com tão angustiante necessidade de combater a corrupção não é aceitável que políticos corruptos sejam agraciados com o sigilo sobre seus crimes, a dormição de seus processos e, não raro, a prescrição dos crimes praticados. De que vale a lei da ficha limpa quando a ficha suja encontra abrigo numa gaveta do tribunal e criminosos seguem influenciando a vida do país?
Por fim, uma questão institucional. O ministro Marco Aurélio ora tem afirmado que o STF se encaminha para ser o Poder Moderador da República, ora que já é esse poder. Trata-se de uma nova criatura extraconstitucional que ganha corpo à margem Congresso. Nossa Constituição não a menciona. Como pode, então, existir e agir? Já tivemos Poder Moderador, na pessoa do monarca, durante o Império, mas essa função de última instância desapareceu com a República. Quando o STF age como se tal função fosse sua ou manifestamente aspira assumi-la, viola-se a separação dos poderes, ao arrepio da Constituição. O que está acontecendo com o Supremo é reflexo do nosso desarranjo institucional, em cujos poderes, então, pouco ou nada confiamos. E isso inclui a tal "última trincheira da cidadania", definição dada pelo ministro Marco Aurélio à corte que integra. Não dá para arrumar o STF sem reordenar toda a organização sistêmica das nossas instituições. Parece-lhe bem, leitor, que uma só pessoa comande o Estado, o governo, a administração, legisle e compre maioria parlamentar, e possa, até mesmo, controlar ideologicamente o Supremo?
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