Num momento de tantas mortes, leio sobre a morte. Leio, não, releio. E me divirto como da primeira vez, porque não se trata da morte real, essa que nos dói e nos aterroriza, que nos espreita da esquina, que está no ar e nas mãos dos desconhecidos e das pessoas que amamos. Minha releitura é um dos livros mais geniais de José Saramago, As Intermitências da Morte, uma fábula sobre a vida e sobre os mais nobres e os mais pobres sentimentos humanos, no estilo sempre atraente e surpreendente do escritor português.
Vargas Llosa, outro monstro da literatura, disse que fabulamos porque a vida é curta demais e o ser humano precisa da ficção para viver outras vidas. Saramago, neste livro, brinca com a morte e o amor, mas vai deixando nas entrelinhas mensagens morais preciosas sobre a imperfeição humana.
A história começa com uma frase que todos estamos ansiosos para ouvir nestes dias de tantas aflições:
– No dia seguinte ninguém morreu.
Parece um sonho, não é mesmo? Pois o livrinho de Saramago comprova que se trata de um pesadelo. A greve da morte, festejada num primeiro momento como uma bênção, como a almejada conquista da eternidade, acaba se revelando uma desgraça imensa – o sofrimento infinitamente prolongado, a decrepitude continuada, o caos. Daqui não passo, para não antecipar a emoção de quem vai mergulhar pela primeira vez nessa inusitada aventura.
Porém, antes que os espíritos mais sensíveis rejeitem a sugestão de encarar tema tão árido numa hora dessas, advirto que o amor também entra em cena. E é esse sentimento igualmente misterioso que dá sentido à nossa travessia pela existência, mesmo quando somos desafiados como estamos sendo nestes últimos dias. Llosa escreveu recentemente um belo artigo no El País, lembrando que aprender a ler foi a coisa mais importante de sua vida.
E exemplificou:
– As boas leituras não produzem somente felicidade; ensinam a falar bem, a pensar com audácia, a fantasiar, e criam cidadãos críticos, desconfiados das mentiras oficiais dessa arte suprema do mentir que é a política.
Acrescento eu, para finalizar: ler sobre a morte, mesmo num momento em que a realidade se mostra mais espantosa do que a ficção, também nos ajuda a entender melhor a vida e certamente nos torna mais humanos.