“Ao perder-te, nós a ti/ todos teremos perdido/ Nós, porque tu eras/ o poeta que mais amávamos./ Tu, porque éramos nós os que te amávamos mais./ Mas, de todos nós,/ nós perdemos mais do que tu./ Porque não poderemos amar outros/ como amávamos a ti./ E tu terás o amor eterno/ de todos que amaram tua poesia.”
Perdão, leitores, mas não resisti à tentação da paráfrase pouco inspirada para homenagear Ernesto Cardenal, morto no último domingo, aos 95 anos. Aprendi a gostar do padre poeta da Nicarágua com o meu saudoso colega Paulo Sant’Ana, que, de vez em quando e sem aviso prévio, declamava alto uma tradução em português, de sua autoria, com a ajuda de Doroteo Fagundes.
“Tu e eu, ao perdermos/ um ao outro,/ Ambos perdemos./ Eu, porque tu eras o que/ eu mais amava,/ Tu, porque eu era quem/ te amava mais./ Mas, entre nós dois,/ Tu perdes mais do que eu./ Porque eu poderei amar/ a outras/ Como amei a ti./ Mas a ti nunca ninguém/ jamais amará/ Como eu te amei”.
Sant’Ana mantinha uma infidelidade eclética em relação a poetas. Amava, também e incondicionalmente, Augusto dos Anjos, que era angelical apenas no sobrenome. Nos seus versos, chegava mesmo a ser ferino e escatológico. Extremos opostos que deliciavam meu amigo bipolar. Mas ele também transitava pelo romantismo sensível e sensual. Me fez prestar atenção – e me emocionar – com a Valsinha de Chico Buarque de Hollanda.
Cardenal, pelo que contam seus biógrafos, também tinha duas vidas: “Deus me perseguia e eu perseguia as muchachas” – confessava. A elas dedicou vários de seus poemas, os célebres epigramas. Mas era, acima de tudo, um revolucionário, um defensor dos oprimidos, um combatente dos ditadores e autoritários. Apoiou a luta armada contra a ditadura dos Somoza e terminou sua existência combatendo os antigos aliados sandinistas, instalados no poder e contaminados pelo vírus do autoritarismo. Expurgado pela própria Igreja, por sua militância na Revolução Sandinista e sua pregação da Teologia da Libertação, foi reabilitado recentemente pelo papa Francisco, que lhe devolveu o direito de exercer o sacerdócio.
O que ele nunca deixou de exercer, até as últimas horas de sua passagem pelo planeta, foi o sacerdócio da poesia. Por isso sua partida merece ser saudada com a paródia respeitosa de outro de seus versos famosos, o início da Oração por Marilyn Monroe:
— Senhor, recebe este homem conhecido em toda Terra com nome de Ernesto Cardenal, ainda que seu verdadeiro nome fosse Poesia.