Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Em 29 de novembro de 1947, a Assembleia Geral da ONU examinou um plano de partilha da Palestina - até então sob domínio britânico - em dois Estados, um judeu, outro árabe. Submetido o projeto à votação, a aprovação foi maciça. A milenar aspiração judaica à terra onde nasceu sua identidade como povo via-se justificada pelo brutal sacrifício representado pelo Holocausto nazista; até mesmo União Soviética e Estados Unidos, inimigos viscerais, uniram-se no voto a favor. Os países árabes viram na decisão uma interferência numa região que consideravam sua; o resultado foi uma guerra, a primeira das guerras da qual Israel saiu não apenas consolidado, mas com seu território aumentado. Hoje existe de novo a possibilidade de dois Estados. Muito sofrimento poderia ter sido evitado se a racionalidade prevalecesse em 1947. Mas não é assim que caminha a humanidade. Ela prefere estranhos sendeiros.
E é aí que entra uma história paralela. A Assembleia Geral, na ocasião, era presidida por um representante do Brasil - o gaúcho Oswaldo Aranha. Que ficou, portanto, associado à criação do Estado de Israel, e tornou-se um ídolo da comunidade judaica. Muita gente pensa que a principal avenida do bairro Bom Fim recebeu o nome de Oswaldo Aranha em homenagem ao chanceler. Não foi assim, mas de qualquer modo trata-se de uma coincidência chamativa.
Durante muitos anos prosseguiram as homenagens a Oswaldo Aranha. E então entra em cena Anita Novinsky. Titular do Departamento de História na USP, a destemida professora Novinsky jamais vacilou ante temas perturbadores. Coube a ela trazer ao debate público um assunto que, no Brasil, sempre foi embaraçoso, para dizer o mínimo: o papel da Inquisição. Eu mesmo participei de um congresso que ela organizou e me lembro de fisionomias contrafeitas e depoimentos constrangidos. Pois uma assistente de Anita Novinsky, a professora Maria Tucci Carneiro, trouxe à baila uma questão igualmente delicada: o papel do governo Vargas à época da II Guerra. Revelou a existência de uma portaria secreta do Itamaraty, proibindo a entrada dos chamados "elementos semitas" que fugiam do nazismo. Tal proibição equivalia, em muitos casos, a uma sentença de morte: voltando, as pobres criaturas iam direto para os campos de extermínio. O Brasil não foi o único país a proibir a entrada de refugiados - os Estados Unidos fizeram o mesmo - nem este foi o derradeiro episódio de uma história sombria: basta ver o tratamento que os europeus dão aos emigrantes árabes. Mas a notícia foi um anticlímax e deixou muita gente perplexa, quando não consternada. Um novo estudo foi feito pelo professor Jeff Lesser, atualmente na Brown University. Ele teve acesso aos arquivos secretos do Itamaraty e sua conclusão foi um pouco diferente. A portaria existia, sim, e sua aplicação era zelosamente vigiada por anti-semitas do segundo escalão, mas, como muitas vezes sucedeu no Brasil, aplicava-se o método de "aos inimigos a lei, aos amigos a compreensão". Muita gente conseguiu escapar ao Holocausto graças ao proverbial jeitinho. O escritor Guimarães Rosa, à época cônsul em Hamburgo, salvou vários. O próprio Oswaldo Aranha, dizem, ajudou na admissão de refugiados.
As ironias da História. Às vezes, elas mostram o nosso lado irracional. Outras vezes, dão prova de nossa compaixão. Sempre mostram que, ao fim e ao cabo, somos apenas imperfeitos seres humanos.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
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