Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
A ação de “Ulysses” se passa num único dia, 16 de junho de 1904, numa única cidade, Dublin
Este dia 16 de junho é o Bloomsday, o Dia de Bloom. Quem foi Bloom? Um santo, como Santo Antônio ou São Jorge? Um mártir, como Tiradentes? Um herói, como Zumbi dos Palmares? Não. Leopold Bloom nunca existiu. Ele é o personagem literário do romance Ulysses, de James Joyce, cuja ação se passa em uma única cidade, Dublin, em um único dia, 16 de junho de 1904. Desde então os admiradores de Joyce, que hoje são legião, reúnem-se neste dia para uma verdadeira maratona de homenagens ao grande escritor, uma tradição que, aqui no Brasil, foi lançada pelo poeta e crítico paulista Haroldo de Campos.
O que torna Ulysses uma obra cult na literatura? A história, aparentemente, nada tem de sensacional, não é uma intriga mirabolante. Baseada, como o próprio nome do livro o indica, na Odisséia de Homero, gira basicamente em torno a três personagens: Stephen Dedalus, que está procurando o pai, Leopold Bloom, coletor de anúncios, e sua infiel esposa, Molly Bloom. Ao longo do dia, vários incidentes se sucedem, e, para narrá-los, Joyce usa uma linguagem completamente inovadora. Ele não se restringe ao inglês habitual, mas inventa constantemente palavras, o que se constitui num fascinante desafio para o leitor – Joyce disse que uma pessoa poderia dedicar a vida a ler e interpretar o seu livro, o que pode parecer exagero de autor orgulhoso, mas não o é. Traduzi-lo é uma tarefa gigantesca, como tem dito o nosso mestre Donaldo Schüler, que trabalha uma outra obra de Joyce, o Finnegans Wake. É na verdade um trabalho de recriação. Ulysses foi traduzido por um outro mestre do idioma, Antonio Houaiss (isto mesmo, aquele do dicionário Houaiss), que teve, também, de recriar numerosos vocábulos. Tão difícil era o inglês de Ulysses, que os próprios tipógrafos se atrapalhavam; cerca de 1200 erros foram achados quando se comparou a obra impressa com o original. Muitos desses erros certamente foram objeto de grande reflexão por parte dos especialistas, o que faz lembrar uma historinha ocorrida aqui em Porto Alegre, com um filme de Jean-Luc Godard. Projetada em pré-estréia, a obra parecia incompreensível, mas logo surgiram teorias sobre o “sentido do tempo” em Godard, teorias que geraram muita discussão. Mas então se descobriu: o operador do cinema simplesmente tinha trocado a ordem dos rolos.
Publicado em 1922, o mesmo ano da Semana de Arte Moderna no Brasil, Ulysses representou, como esta, um escândalo literário. Rotulado como indecente, foi até objeto de uma ação judicial, sem falar em críticas contundentes: Virginia Woolf lamentou a “obsessão cloacal” de Joyce. O tempo mostrou, contudo, que se tratava de uma autêntica obra-prima. Meus dois trechos favoritos são primeiro aquele em que Joyce narra um trajeto feito por Bloom e Dedalus sob a forma de perguntas e respostas, como num catecismo (“Que reminiscências fizeram temporariamente franzir sua testa? Reminiscências de coincidências, verdade mais estranha que ficção...”) e depois, naturalmente, o monólogo final de Molly semiadormecida, páginas e páginas de fluxo de consciência, sem pontos, sem vírgulas, com um final comovedor (“puxei-o para mim de tal modo que pudesse sentir meus seios perfumados sim e seu coração batia loucamente e sim eu disse sim farei Sim.”)
Sim. Atrás do Bloomsday há uma história de amor. Foi em 16 de junho de 1904 que Joyce levou a passear por Dublin Nora Barnacle, camareira de um hotel, por quem estava apaixonado. Casaram, e ela o acompanhou por várias cidades européias, onde Joyce lecionou inglês (inclusive para Italo Zvevo, o autor do fantástico A Consciência de Zeno). Como muitos escritores, Joyce tinha com sua cidade (e seu país) um caso de amor e ódio. Caso este que ele soube transformar numa obra-prima da modernidade literária.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"