Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Quando se abre Aventuras de uma Língua Errante (lançamento da editora Perspectiva) e se constata que a língua errante é o ídiche, uma primeira conclusão se impõe de imediato: o autor só poderia ser Jacó Guinsburg. No Brasil, ninguém conhece o tema melhor do que ele. Ninguém se dedicou tanto à divulgação da cultura que o ídiche representa: são dezenas de títulos nesta editora, que há exatamente 30 anos ele vem dirigindo. E podemos ter certeza de que Aventuras... é a culminância deste esforço: é uma vasta obra, belamente ilustrada, que traça, para o leitor brasileiro, a trajetória de um grupo humano que, apesar do sofrimento, ou por causa dele, criou uma pujante cultura.
Mas o que é o ídiche? Em primeiro lugar, é o resultado da diáspora, este vagar sem rumo de região em região, de país em país. Expulsos da antiga Palestina, os judeus espalharam-se por vários locais, inclusive dentro do próprio Império Romano. Por volta do século 10, judeus vindo da Itália e de regiões românicas estabeleceram-se nas margens do Reno, nas atuais fronteiras franco-alemãs. Aí surgiu uma curiosa mistura linguística: o hebraico ritual, mais o aramaico herdado da linguagem corrente à época bíblica, mais francês, mais italiano, e, sobretudo alto-alemão, geraram o que seria aquilo que Jacó Guinsburg denomina "uma língua-passaporte": o ídiche. Ele acompanharia os judeus nos seus constantes deslocamentos, primeiro para a Europa Oriental, onde surgiram grandes comunidades, e depois para a América. Eram os aschkenazim (do hebraico Aschkenaz, Alemanha), a diferenciar-se dos sefaradim (de Sefarad, Espanha), que falavam o ladino, uma espécie de espanhol arcaico. Na Europa Oriental, surgiu o shtetl, a aldeia judaica, e ali o ídiche era praticamente o único idioma. Em ídiche falavam os mestres do hassidismo, este movimento religioso do século 18 que representou uma reação ao frio e austero judaismo praticado pelas afluentes comunidades da Europa Ocidental. E em ídiche surgiu uma surpreendente literatura e um não menos surpreendente movimento teatral - que se constituem no tema principal do livro. Encontramos em primeiro lugar a tríade de ouro da literatura em ídiche: Mêndele Mokher Sforim (Mêndele, o Vendedor de Livros, pseudônimo de Scholem I. Abramóvitch, 1836-1917), Itzkhak L. Péretz (1852-1915) e o grande Scholem Aleikhem (Scholem Rabinovitch, 1859-1916), criador do personagem Tevie, o Leiteiro, que inspirou o filme O Violinista no Telhado. Eram escritores de grande público, sobretudo pela temática: em suas páginas, o que temos são histórias de gente simples, narradas com humor e emoção. Entre parênteses, os judeus da Rússia não se restringiam ao ídiche; quando melhoravam de vida, aprendiam o russo e depois o francês, que era a língua usada pela aristocracia do império tzarista. Há uma história muito ilustrativa a respeito, sobre uma jovem grávida que está a ponto de dar à luz. O doutor é chamado, e encontra a moça gritando em francês. Não é hora ainda, diz à mãe. Logo em seguida a moça começa a gritar em russo, e o doutor repete: não, ainda não está na hora. Quando ela finalmente grita em ídiche, ele diz: agora sim, a criança vai nascer. O ídiche era a língua visceral daquela gente, a língua na qual se exprimiam as emoções mais autênticas - e disso sabiam os escritores.
Em ídiche foi escrito O Dibuk (de An-Ski, pseudônimo de Schloime Z. Rapaport, 1863-1920), a história de um rapaz que, morto, encarna em sua prometida, cuja mão lhe tinha sido negada. Esta narrativa, que mistura romantismo com elementos do misticismo judaico, foi encenada inúmeras vezes (e mostrada inclusive na Globo) e levada ao cinema. Em ídiche foram escritos também os poemas proletários, expressão do sonho socialista que animou os judeus tanto na Europa como na América (e que se viu cruelmente frustrado pelo stalinismo). Em ídiche, finalmente, havia uma exuberante imprensa, com jornais de grandes tiragens.
O Holocausto despedaçou o mundo do ídiche. Hoje, o número de judeus nos países da Europa Oriental é insignificante; os que não foram trucidados, emigraram para Israel e para os Estados Unidos. Na América, o desaparecimento do ídiche tem outra causa: o rapidíssimo processo de assimilação. Jacó Guinsburg vê em Itzkhak Baschevis Singer o "último elo" com o mundo do ídiche. Às vezes, se fala em um renascimento do idioma, em geral por conta de iniciativas individuais ou de pequenos grupos. Iniciativas bem intencionadas, mas com escassa chance de êxito. Do ponto de vista cultural, o que desapareceu foi o próprio substrato do ídiche, aquele tipo de judaismo do qual ele se nutria: um judaismo culto, mas com profundas raízes populares, possuído de uma incrível fé no futuro. A religião judaica tem os seus rituais e suas formas de apoiar as pessoas, o Estado de Israel tem o seu projeto desenvolvimentista e seus problemas com os vizinhos do Oriente Médio; nada disto tem a ver com o humor judaico ou com a literatura de Scholem Aleikhem. O ídiche sobrevive agora unicamente no país chamado memória. Que, graças a autores como Jacó Guinsburg, podemos visitar - ocasionalmente, mas sempre com emoção.
* * *
Trecho
Eu sei que ninguém precisa de mim neste mundo,
de mim, esmoleiro de palavras no cemitério judeu.
Quem precisa de um poema - e ainda mais em ídiche?
Mas só o desesperançado na terra é belo,
divino só é o efêmero,
e só a humildade é rebelde.
Zeks Schures, "Seis Linhas, poema de Aaron Zeitlin, 1898-1973, transcrito por Jacó Guinsburg em Aventuras de uma Língua Errante
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
Leia também:
Carta da editora: "Scliar, nos bastidores"
Moacyr Scliar, 80 anos. O que fica de sua obra
Acesse a página oficial do escritor