Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
O conflito entre seres humanos – inclusive e principalmente o conflito sangrento – sempre fascinou escritores, anônimos ou famosos. Na Bíblia, este conflito aparece precocemente. Caim e Abel, o primeiro criminoso e a primeira vítima, são personagens paradigmáticos: representam a antiga rivalidade entre lavradores e pastores, que não raro degenerava em luta feroz. A violência de Caim não é pois, exceção, mas sim o combustível do qual se nutriria a guerra – guerra esta freqüentemente celebrada. A Ilíada, de Homero, datando aproximadamente do século 9 a .C. descreve a guerra de Tróia, a captura da lendária cidade pelos gregos desejosos de vingar o rapto de Helena. Trata-se, pois, de uma celebração, em que predomina a figura do herói. Esse modelo duraria muitos séculos, em boa parte porque a arte dependia dos mecenas e dos poderosos, a quem agradava (e convinha) tal celebração.
A modernidade, contudo, alterará essa visão. Em Dom Quixote, de Cervantes, teremos o anti-herói, o patético Cavaleiro da Triste Figura. Os gigantes contra os quais investe não são inimigos reais, são produtos de uma mente enferma. O heroísmo estava assim sendo posto em xeque. Esse processo se mostraria irreversível e chegaria a seu ápice no começo do século 20. A I Guerra Mundial teve um efeito devastador sobre a cultura ocidental. As velhas e pomposas imagens de uma guerra cavalheiresca, conduzida por aristocratas, foi engolfada por uma maré de lama e sangue. Nada de heróis enfrentando-se na liça; tratava-se agora da suja luta de trincheiras, os ataques com gás tóxico (sim, Saddamn Hussein teve precursores), os bombardeios de artilharia: uma guerra industrial, em que a ciência foi colocada a serviço da destruição. A I Grande Guerra durou quatro anos e custou mais de 8 milhões de vidas: soldados da Europa, dos Estados Unidos, das colônias europeias na Ásia e da África. Viu o colapso de impérios – o germânico, o russo, o austro-húngaro. Catalisou mudanças revolucionárias, o exemplo mais evidente sendo a Revolução Russa de 1917.
Os escritores europeus e norte-americanos tinham muito a dizer sobre os horrores dessa guerra, mesmo porque vários nela participaram – Erich Maria Remarque, Henri Barbusse, Ernest Hemingway, John dos Passos, Siegfried Sasson, Isaac Rosenberg, Hector Munro (Saki), Robert Graves, Herbert Read, Ernst Toller, Guillaume Apollinaire, André Breton, Franz Werfel, Blaise Cendrars, Jean Cocteau, Paul Éluard, E.E.Cummings, Archibald MacLeish, Edmund Wilson, Eugenio Montale, Giuseppe Ungaretti, Gottfried Benn, Ilya Ehrenburg... Muitos não retornaram: a lista de escritores e poetas mortos nas trincheiras chega a 750.
Esses autores não começavam do zero. Eram herdeiros de uma grande tradição. O século 19 foi o período áureo da literatura de ficção, o período em que um Tolstoi, um Dostoiévski, um Zola exploraram os meandros da mente humana e os subterrâneos da sociedade. O tema principal da literatura de guerra era o absurdo do conflito, nascido de um ato tresloucado – o atentado contra o arquiduque Ferdinando – e que logo se transformou em loucura generalizada. Não é de admirar que os escritores tenham sido os porta-vozes de um pacifismo que se impunha como reação à insensatez. Três romances exemplificam esse libelo contra a guerra: Nada de Novo no Front Ocidental, do alemão Erich Maria Remarque, depois transformado num belo filme; Os Thibault, de Roger Martin du Gard, gigantesco painel sobre o conflito; O Bom Soldado Schweik, a feroz sátira do tcheco Jaroslav Hasek.
Na II Guerra Mundial, o pacifismo ficou relegado a um segundo plano, diante da ameaça monstruosa representada pela máquina de extermínio nazista. Mas já na guerra do Vietnã, o absurdo tornou-se evidente e mais evidente fica ainda no cenário pré-bélico atual, reforçado inclusive por um alucinado terrorismo que, potencializado pela moderna tecnologia, tornou-se um componente adicional, e muito perturbador, no quadro da disputa pela hegemonia mundial. A resposta a essa situação não será dada, no entanto, por romances ou contos; é a mídia que agora funciona como caixa de ressonância das aspirações pacifistas. A literatura pode ser mais ampla, mais profunda, mas é menos urgente. E urgência na paz é a palavra de ordem na conjuntura atual. Uma conjuntura que se caracteriza pela perplexidade. Como disse o poeta russo Aleksandr Blok, que lutou no conflito de 1914-1918: “Que mensagem, anos de guerra, vocês nos trazem? / Mensagem de loucura – ou de esperança?”. A luta pela paz aposta nessa última alternativa. E tem pressa.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"