Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Em 1914, o escritor Monteiro Lobato, então fazendeiro de Taubaté, São Paulo, publicou em O Estado de São Paulo dois artigos, Urupês e Velha Praga, queixando-se dos caboclos do Interior, segundo ele, inadaptáveis à civilização. O texto de maior impacto falava de Jeca Tatu: caboclo apático e preguiçoso, comparável aos urupês, plantas parasitas.
Mas Lobato acabou abandonando essa visão irritada e pessimista. A mudança foi desencadeada pela leitura do relatório Saneamento do Brasil, dos sanitaristas Artur Neiva e Belisário Pena. Colaboradores do grande sanitarista Oswaldo Cruz, Neiva e Pena tinham, como seu mestre, viajado extensivamente pelo interior do Brasil. Na volta, redigiram um relatório descrevendo a espantosa miséria e a deprimente condição sanitária no interior do Brasil – o Nordeste, sobretudo.
Tal relatório mexeu com muita gente – Lobato, inclusive. O problema do Jeca Tatu, constatava-o agora, não era preguiça, era doença, sobretudo a verminose. Naquela época, era muito comum a necatorose ou ancilostomíase, causada por um minúsculo verme que, vivendo no solo, penetra no corpo pela sola dos pés – a maioria dos brasileiros não tinha calçado – e termina seu ciclo no intestino, sugando o sangue e causando anemia, não raro grave; anemia esta responsável, juntamente com a desnutrição, pelo desânimo e pela fraqueza dos caboclos. Impressionado, dizia Lobato em texto dirigido ao imaginário Jeca: “Eu ignorava que eras assim, meu caro Tatu, por motivo de doenças tremendas. Está provado que tens no sangue e nas tripas um zoológico da pior espécie. É essa bicharia cruel que te faz feio, molenga, inerte. Tens culpa disso? Claro que não.”
Mas àquela altura Jeca Tatu estava famoso. Até Rui Barbosa recorreu a ele, para protestar contra o poder público. Movido talvez pela culpa, Lobato achou que precisava fazer alguma coisa pelos Jecas do Brasil. Associou-se a Cândido Fontoura, farmacêutico que criara um tônico muito popular. Tratava-se de uma fórmula complexa, anunciada com um mágico pregão: “Ferro para o sangue, fósforo para os músculos e nervos”. Havia ainda um pouco de álcool, adicionado por razões de formulação, mas que não deixava de alegrar a pessoa (recentemente tal adição foi proibida pelo Ministério da Saúde). O Biotônico Fontoura – o nome foi dado por Lobato– era visto pelo público exatamente como isso, um tônico vital. A verdade é que funcionava e provavelmente curou, ou melhorou, a anemia de muita gente.
Lobato foi adiante na colaboração literário-farmacêutica (segundo a expressão de Marisa Lajolo). Editou o Almanaque do Jeca Tatu, em que explicava, por meio de uma história simples, como se contrai a ancilostomíase e como se evita o problema. Jeca Tatu e sua magra, pálida e triste família recuperam a saúde graças ao Biotônico Fontoura e ao uso de sapatos. O caboclo se transforma em fazendeiro rico. Final feliz para ninguém botar defeito.
Jeca Tatu está meio esquecido, mas o problema que personificava continua presente. Ainda hoje a deficiência de ferro é o distúrbio nutricional mais comum no mundo e a principal causa de anemia na infância e na gravidez. Ocorre nos países subdesenvolvidos como um aspecto das múltiplas carências alimentares nessas regiões; mas pode ocorrer também em pessoas de melhor condição social. É uma situação na qual sempre se deve pensar. Para que depois, como Monteiro Lobato, não venhamos a nos arrepender.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
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