Para ler a coluna sem resquício de qualquer preconceito, sugiro a quem me lê o despudor de não levar em conta idade, nacionalidade, regionalidade, nada. Que se traga como critério o currículo desde o início da carreira, o que incluirá por natureza o melhor e o pior que Luiz Felipe Scolari e Dorival Júnior viveram à beira do campo.
Na eterna simbiose do futebol com a vida, no confronto entre os dois treinadores de gerações diferentes está o mapa do viver. Para quem gosta de frase feita, não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe.
Numa trajetória longa, tal como a de Luiz Felipe e de Dorival, haverá argumentos para encher e esvaziar a jarra de cada um. Depende do olhar que se queira debruçar sobre um e outro. O momento, no entanto, conecta por cima os técnicos de Athletico-PR e Flamengo. Por razões diferentes, o que torna a história mais interessante.
Luiz Felipe, por exemplo, viveu a euforia do penta e a depressão do 7x1, parecia acabado como profissional depois da goleada no Mineirão, aí teve episódios desconexos de sucesso no Palmeiras e fracasso no Grêmio. No clube do coração, o treinador esteve duas vezes depois da Copa brasileira. Na primeira, ainda em 2014, seu trabalho foi menos fracassado do que medíocre. Era sua primeira experiência pós-trauma alemão.
Goleou o Inter no Brasileirão, por exemplo. No ano seguinte, abandonou a área técnica no Gauchão em meio a uma derrota para o Veranópolis como se estivesse dizendo que com aquele time não dava, não havia o que fazer, a culpa não era dele.
Saiu chamuscado, o que não impediu Romildo Bolzan de recorrer ao ídolo para tentar evitar o rebaixamento seis anos depois. Luiz Felipe não conseguiu tirar o time do Z-4, foi demitido com o rótulo de que o grupo de jogadores rejeitava seu jeito supostamente anacrônico de trabalhar o cotidiano dos treinos. Os fatos recentes da carreira desiludiram o profissional. Quando recebeu o convite do Athletico-PR, não era para treinador e sim diretor técnico.
O insucesso de Fábio Carile em um mês fez Mário Petraglia, eterno chefe athleticano, apelar a Luiz Felipe para que assumisse de treinador. O resto, a história improvável e por isso maravilhosa, contou por si mesmo. O velho cansado deu lugar ao velho animado, atento, criativo e bem assessorado pelo vigor do auxiliar Paulo Turra, zagueiro capitão do título gaúcho do Caxias 22 anos atrás.
Para ser finalista da Libertadores, o Athletico-PR de Luiz Felipe montou uma equipe cheia de jovens e acrescida da experiência de Fernandinho. Deixou pelo caminho o argentino Estudiantes de la Plata, batido em casa, e o atual campeão da Libertadores, o milionário Palmeiras. Não há como diminuir a força do trabalho de Luiz Felipe Scolari. Como também não é possível negar a clara superioridade técnica do Flamengo treinado por Dorival Júnior.
Antes de chegar ao Flamengo para sanar as sandices cometidas pela soberba do português Paulo Souza, o ex-volante de Palmeiras e Grêmio recém retomava a carreira num clube médio nordestino. O tempo anterior a este retorno, Dorival teve que destinar a cuidar da própria saúde. Dorival Júnior superou problemas cardíacos e covid-19.
Era como se a vida estivesse lhe dando outra chance. No Ceará, com rapidez, Dorival armou um time competitivo e nem de longe reativo. Velocidade para dar certo era tudo o que o Flamengo precisava quando, enfim, percebeu que Paulo Souza levaria o time para lugares perigosos, tamanha sua incapacidade de entender onde estava e o que deveria fazer.
Reza a lenda que ele foi contratado para sacudir grupo vitorioso e entediado, tirar medalhão preguiçoso do time, criar outro ciclo. Não conseguiu nada remotamente parecido, mas deixou um legado em sua curta e desastrada passagem na Gávea. João Gomes, feito em casa, virou titular com Paulo Souza. Dorival Júnior aproveitou o raro acerto do antecessor e passou a atuar pelos próprios méritos.
Como base do seu trabalho, uma simplicidade que sensibilizou os protagonistas relaxados. Simples sem ser simplório, porque muito competente, Dorival foi além. Encontrou uma fórmula tática exata para juntar Gabigol e Pedro entre os 11. Devolveu naturalidade para Everton Ribeiro e Arrascaeta flanarem pelo meio-campo.
Conversou com Thiago Maia e o convenceu a se esforçar para voltar a ser o volante que surgiu com brilho no Santos. Deu injeção cavalar de confiança em Léo Pereira e fez ressurgir o zagueiro eficiente dos tempos de Athletico PR. Como cereja mais doce deste bolo, Dorival Júnior inaugurou um Rodinei inédito para todos os que viam seu futebol irregular como ameaça permanente à própria defesa.
O lateral-direito virou protagonista. Segunda passada, no "Bem, Amigos!", Galvão Bueno sugeriu sua convocação para o Catar. Em outros tempos, seria uma excentricidade do fantástico narrador da Globo. Hoje, não. Rodinei está brilhando. É fato.
O Flamengo voltou a ser um timaço. Virou finalista ganhando duas vezes de um gigante argentino, o Vélez Sarsfield. Pode ser campeão como a melhor campanha da história da Libertadores.
Parece blindado contra uma Sapucaí antecipada que poderia derrotá-lo como tantas vezes aconteceu na história do clube. Em qualquer perspectiva de jogo normal em Guaiaquil, o Flamengo se sagra campeão. O Athletico PR precisará tirar a normalidade do jogo, o que não inclui violência e sim estratégia. Luiz Felipe vai para a decisão como gosta. Desafiante. Perigosíssimo. Dorival renasceu, pode ser campeão da Copa do Brasil. Entra favorito.
Luiz Felipe e Dorival não são dinossauros. Não estão superados pela idade, pela falta de estudo, pelo tipo de treinamento, pelo país de origem ou qualquer outra razão estapafúrdia que tentasse decretar o fim deles. Não se cancela ser humano, não se cancela profissional. Respeita-se. Gosto mais do jeito que o técnico do Flamengo faz futebol, o que não me impede de louvar o treinador do Athletico-PR como um dos mais importantes personagens da história do futebol brasileiro em todos os tempos.
E do planeta, já que tem no currículo um título de Copa do Mundo. Os dois podiam estar em casa. Ficaram ricos pelo seu trabalho. Têm filhos e netos. Sítios. Casas de praia. Acima de tudo, porém, Luiz Felipe Scolari e Dorival Júnior guardam no pulsar do coração e no correr do sangue nas veias a paixão original que levou cada um ao ofício há tantos anos exercido. É mais do que ofício. É sacerdócio. Guardadas as devidas proporções, sei bem do que se trata.