Para quem acompanha as contas públicas não houve surpresa, mas o déficit primário de R$ 230,5 bilhões em 2023 evidenciou a dificuldade que será entregar as contas públicas sem rombo neste ano, como está previsto no novo arcabouço fiscal. Apesar de o resultado muito negativo embutir pendências deixadas pelo governo anterior, o tamanho do esforço para tapar o buraco será imenso, o que acentuará o debate sobre a possiblidade de uma mudança da meta de déficit zero. Guilherme Tinoco, pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV), já classificou o superávit de 2022 como "irreal", exatamente por não incluir contas que deveriam ter sido pagas nesse exercício. Mas também é cético sobre o aceno do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, sobre "corte de gastos".
O déficit de 2023 assustou, mesmo quitando heranças de 2022?
Se comparar com outros anos, especialmente o anterior, houve deterioração fiscal. Mas foi bem menos intensa do que sugere a comparação com o ano anterior. O superávit de 2022 foi irreal, obtido em condições específicas, que ajudaram no lado na receita, pela inflação mais alta. E também teve o calote dos precatórios, que o atual governo decidiu quitar no ano passado.
O que mais pesou no rombo?
Foram três fatores. Um, despesas extraordinárias elevadas, muitas decorrentes de decisões equivocadas tomadas em 2022, como os precatórios e a compensação a Estados por desonerações feitas no ano eleitoral. Dois, queda de arrecadação, concentrada em dividendos, concessões e royalties de petróleo, em boa parte provocada pela queda no preço. E três, aumento da despesa, com a adoção do valor do Bolsa Família aumentado no contexto eleitoral. O novo governo quis recompor programas sociais, o que é uma decisão legítima em mudança de mandato. O Bolsa Família foi uma despesa que dobrou, de R$ 88 bilhões para R$ 166 bilhões.
Mas também houve ocorrência de despesas extraordinárias elevadas, e muitas são decorrência de decisões equivocadas tomadas em 2022, como os precatórios e a compensação a Estados em decorrência das desonerações feitas no ano eleitoral.
Há chance de déficit zero?
A tendência, para a frente, é de melhora. Mas não sabe a velocidade. Se as metas do arcabouço forem cumpridas, vai ser rápido. Hoje, o mercado estima que o déficit fique ao redor de 0,8% do PIB. Se for isso, será uma melhora frente aos valores de 2023, que foi 2,1% do PIB se considerar o total ou 1,1% se tirar as exceções, como os precatórios e as compensações. Então, para o futuro tem melhora, mas a velocidade ainda é incerta. Vai depender da manutenção ou não das metas. Se forem alteradas, nesse caso certamente para mais, essa melhora vai ser mais lenta.
A redução na arrecadação de impostos pode ser atribuída à reação ao aumento de carga tributária?
É difícil dizer. Houve recomposição da tributação sobre os combustíveis, mas foi feita de maneira gradual. Isso atrapalhou, do ponto de vista da arrecadação. No primeiro trimestre o governo começou recebendo menos por conta da desoneraçao. Ao longo de 2023, foi possível recuperar um pouco. À medida que foi reonerando, a comparação com o primeiro semestre de 2022, que não tinha desoneração, ficou melhor. Mas não reonerou tudo.
O novo arcabouço significa limite de despesas. Não vejo o governo gastando menos do que o limite, mas há previsão de um ajuste que prevê o crescimento menor da despesa em relação ao da receita.
No início do ano, o ministro da Fazenda, Fernando Hadad, chegou a anunciar corte de gastos. O que é possível esperar?
Aqui, há duas coisas. O novo arcabouço significa limite de despesas. Não vejo o governo gastando menos do que o limite, mas há previsão de um ajuste que prevê o crescimento menor da despesa em relação ao da receita. A regra define que a despesa só pode crescer até 70% do aumento da receita que for obtido. Internamente, pode haver redução de despesa, mas mais no sentido de rever alguns programas para priorizar outros. Existe um limite total de gasto, mas há despesas que vão crescer mais, por causa dos mínimos constitucionais em saúde e educação. Esses gastos voltam a crescer com receita, então vão crescer mais do que as outras. Então, pode haver mudança para não deixar o investimento se reduzir muito. Então pode haver redução de despesa, mas não para abaixo do limite.
Há espaço para rever os gastos mínimos com saúde e educação?
Independentemente de haver ou não um aumento forte na arrecadação, a indexação dessas despesas faz com que cresçam mais do que a média. As regras para os dois setores são diferentes, mas para alterar, é preciso fazer uma proposta de emenda constitucional (PEC). Vai haver uma disputa interna por itens da despesa, e pode caber uma agenda de avaliação do gasto. O discurso deve ser mais de priorização, não de corte de gastos. De deslocar gastos mais ineficiente para os mais eficientes, para politicas públicas que estão gerando mais resultados e mais benefícios para a população.
Vai haver uma disputa interna por itens da despesa, e pode caber uma agenda de avaliação do gasto. O discurso deve ser mais de priorização, não de corte.
Nesse quadro, a mudança de meta é inevitável?
Vai ser muito difícil atingir. Mas o ministro da Fazenda tem se esforçado bastatne. Seria bom que continuasse perseguindo a meta, até onde for, mesmo que não consiga entregar. Se continuar perseguindo, vai chegar mais perto.
Se não mudar, vai ter de começar a contingenciar?
Vai ser difícil alcançar a meta só com arrecadação, a menos que tenha uma surpresa muito grande nas medidas já aprovadas. Tirando isso, o mais provável é que a meta só seja alcançada com contingenciamento. Nenhum governo quer contingenciar. É essa a questão que está colocada: para entregar a meta, vai precisar contingenciar, e muita gente não vai querer.
Vai ser difícil alcançar a meta só com arrecadação, a menos que tenha uma surpresa muito grande nas medidas já aprovadas. Tirando isso, o mais provável é que a meta só seja alcançada com contingenciamento.
Por que março é um mês decisivo?
O relatório bimestral de despesas de janeiro e fevereiro provavelmente vai mostrar que estão acima da meta. Esse documento costuma ser divulgado na segunda quinzena de março. Uma mudança de meta não está fora de cenário, o mercado trabalha com essa hipótese.
O que pode ocorrer se a meta mudar?
É difícil dizer. Mas como está mais ou menos precificado, pode não ser tão drástico, especialmente se as medidas aprovadas pelo lado da arecadação já estiverem dando retorno e não haja muita judicialização. Pode ser que o mercado aceite melhor, até porque já espera um pouco. Também vai depender de quanto seria a nova meta. Se revisar para meta maior e o resultado for significativamente melhor do que em 2023, pode ser que não haja tanta volatilidade.