O cinema tem frases impactantes, como "acho que é o começo de uma bela amizade" de Casablanca e "ninguém é perfeito" de Quanto Mais Quente Melhor, mas o fecho verbal de Oppenheimer talvez reserve choque maior, embora seja incompreensível para quem não viu a obra (portanto, não há spoiler).
"Acredito que conseguimos", sem contexto, é uma declaração otimista, que remete a sucesso. Seu papel na obra de Christopher Nolan é o oposto disso. Embora o risco nuclear tenha ressurgido depois do ataque da Rússia à Ucrânia, seu eco vai em outra direção: a ameaça representada pela inteligência artificial - como o próprio cineasta já afirmou.
Antes de seguir, pausa para quem não viu o filme - e um convite da coluna para que o faça o mais rapidamente possível: o título é referência a J. Robert Oppenheimer, que dirigiu o Projeto Manhattan em Los Alamos (EUA), origem das duas bombas atômicas que mataram cerca de 220 mil pessoas na cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Embora não tenha se arrependido do invento que determinou o fim da Segunda Guerra Mundial , Oppenheimer tentou evitar a corrida nuclear que se seguiu, cujo resultado é um arsenal capaz de destruir várias vezes toda a humanidade.
Por isso, a pausa para reflexão - e regulação - nas pesquisas para aplicações de inteligência artificial foi chamada pelos cientistas de "Momento Oppenheimer". Como a coluna já detalhou, não se trata de barrar as pesquisas, mas determinar limites antes que, assim como o arsenal nuclear, abrir caminho para que as máquinas "pensem" também possa induzir ao fim da humanidade, ao menos como a conhecemos.
É curioso, ainda, que o "pai" do ChatGPT - a ferramenta mais conhecida até agora de inteligência artificial generativa (que gera textos e imagens a partir de treinamento prévio) - Sam Altman, seja um dos signatários do texto mais dramático já publicado sobre os riscos embutidos pelo desenvolvimento equivocado da ferramenta, que a coluna já transcreveu:
"Mitigar o risco de extinção pela inteligência artificial deve ser uma prioridade global, ao lado de outros riscos em escala coletiva, como pandemias e guerra nuclear (aqui, o original em inglês)".
É claro que Altman não é Oppenheimer. Se o físico judeu já devia parte da obra a vários outros cientistas, agora a conta do criadores da inteligência artificial é ainda maior e tem contribuições mais importantes do que a do "pai do ChatGPT". Mas quem faz a conexão entre essa tecnologia e a do Projeto Manhattan estão nesse grupo. Como Oppenheimer, sabem que precisam avançar, mas conhecem também as potenciais consequências de um passo em falso.
A coluna conhece e concorda com as críticas ao aparente masculinismo de Nolan, tanto em Oppenheimer quanto em obras anteriores. Mas não pode desconhecer o poder dessa narrativa sobre a força e a fraqueza dos humanos, inclusive para o debate urgente sobre os limites da invenção. Inclusive por incluir uma participação especial da filha do diretor em uma cena de destruição, para lembrar que (palavras dele ao justificar a escolha) "se você criar o poder destrutivo final, ele também destruirá aqueles que são queridos para você". Sim, é um filme duro. Mas também é uma celebração à capacidade de compor um alerta com inteligência humana - e muita ajuda da tecnologia.
Esclarecimento: sim, a jornalista que assina esta coluna só assistiu ao filme um mês depois de seu lançamento, mas sabia que era parte de sua obrigação humana e profissional. Para incentivar quem ainda não viu a remediar essa situação, evitou spoilers.