No governo anterior, a economista Zeina Latif fez críticas frequentes a medidas adotadas na economia, tanto para provocar percepção artificial de retomada quanto a falta de compromisso com reformas estruturantes. No atual governo, segue preocupada com a ausência de sinais de mudanças mais ambiciosas em problemas antigos do Brasil, como a baixa qualidade do gastos público. Com as credenciais de quem já foi economista-chefe da XP Investimentos e secretária de Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo, Zeina avalia que o novo marco fiscal evita o descontrole das contas públicas, mas o país precisa de um plano mais ambicioso.
O novo marco fiscal dá conta do recado?
É necessária uma sinalização do governo, com credibilidade, de que haverá uma arrumação nas contas públicas para estabilizar a dívida pública em rel ao PIB, que está em patamar elevado em relação a países parecidos. É claro que não dá para comparar com países ricos. A dívida alta tem consequências na política econômica. Então, se não der para reduzir, é preciso ao menos conter. E pra isso precisamos ter superávit primário (resultado positivo entre receitas e despesas, sem contar o pagamento da dívida, cuja finalidade é exatamente não deixar o endividamento se acumular) na casa de 2% do PIB. Aumentar a carga tributária é uma forma ruim de fazer ajuste em um país que já tem impostos tão elevados. Tem eficiência menor e machuca a atividade econômica, com consequências de curto prazo na inflação. O Brasil está perdendo uma oportunidade.
O arcabouço evita um quadro de descontrole, mas o Brasil precisa ter mais ambição. Há muitas políticas públicas ineficientes, que precisam ser reavaliadas. Seria importante que um governo de esquerda se dispusesse a discutir reforma administrativa, mesmo sem impacto de curto prazo.
As novas regras não são suficientes?
Não é um plano que tenha consistência suficiente para gerar o superávit primário e, em consequência, a estabilização da dívida pública e das expectativas de que isso ocorra. A previsibilidade da política fiscal é importante para o comportamento dos agentes econômicos e das expectativas de inflação. Como o ajuste depende do aumento da carga tributária, é necessário que isso se concretize para a nova regra ser consistente. Era preciso prever contenção de gastos obrigatórios e novas reformas estruturantes, porque o aumento necessário da carga pode não ser factível. O arcabouço evita um quadro de descontrole, mas o Brasil precisa ter mais ambição. Há muitas políticas públicas ineficientes, que precisam ser reavaliadas. Seria importante que um governo de esquerda se dispusesse a discutir reforma administrativa, mesmo sem impacto de curto prazo. Uma máquina mais eficiente geraria um cenário mais favorável para o futuro. A regra do teto de gastos previa reformas, mas o governo Bolsonaro só aprovou a Previdência. E também não adianta haver regra e o governo descumprir todo o dia.
A reação do mercado não foi relativamente favorável?
O mercado ficou aliviado porque a regra evitou cenários extremos e, no fim do dia, foi estabelecida uma regra. Pode não ser boa, mas está lá. O mercado estava com medo de que fosse mais frouxa. O fato de ter reação positiva não quer dizer que não está com problema. Tira o elefante da sala. Não é tão ruim assim e, além disso, o quadro internacional está bem mais favorável do que se imaginava. O preço das commodities está andando de lado, mas isso já é uma mão na roda para o Banco Central (BC). É o Princípio Goldilock (Cachinhos Dourados): não está nem tão ruim nem tão bom, estão está ótimo (na história infantil, a personagem humana testa dois extremos e ficava sempre com uma terceira escolha, uma média).
Nnão seria absurdo pensar em relaxamento monetário (redução da Selic) aos poucos. O que é entrave, ainda, é a expectativa de inflação e a incerteza sobre a meta. Mas não estamos distantes do início do relaxamento
É válido o argumento do BC para manter a cautela no corte do juro com base nos núcleos de inflação, se a meta é baseada no IPCA cheio?
Os núcleos (cálculos que excluem preços que variam muito) são instrumento de trabalho, mas sim, o mandato é focado na inflação cheia. Os núcleos ajudam a enxergar a inflação verdadeira, então são fatores de tomada de decisão. Mas a julgar pelo comportamento da inflação corrente, existem algumas boas notícias. Existe uma certa rigidez na inflação de serviços, mas não seria absurdo pensar em relaxamento monetário (redução da Selic) aos poucos. O que é entrave, ainda, é a expectativa de inflação e a incerteza sobre a meta. Mas não estamos distantes do início do relaxamento.
A meta é dogma e a alteração é tabu?
Na época em que a meta começou a ser reduzida em 0,25 ponto percentual a cada reunião do CMN (Conselho Monetário Nacional, que define a baliza para o BC), já havia me manifestado sugerindo que, primeiro, o BC entregasse a meta, para depois o CMN pensar em reduzir de novo. Ou seja, primeiro consolida uma inflação mais baixa, com expectativas ancoradas, depois avança. A meta era de 4,5%, passou para 3,5%. O passo para 3% foi muito rápido. Elevar talvez seja o mais sábio, até porque o fiscal não vai dar folga para o BC. Um estudo do Santander mostrou que 0,6 ponto percentual da expectativa de inflação de 4% vem da expectativa de mudança de meta. O problema, como já disse o presidente do BC, é mexer nisso em momento já tumultuado. Isso pode piorar as expectativas de longo prazo. Mas não é isso que tira meu sono. O que me deixa intranquila é a pouca ambição de fazer reformas estruturais e o apego a políticas do passado, como dar novos benefícios tributários. Isso preocupa porque é uma agenda que deveria estar superada. Talvez o CMN aumente a meta. Não é a melhor coisa do mundo, mas não tira o sono. Falta a agenda da educação, a do ambiente está uma bagunça.
Foi feita uma escolha política, de um governo que foi eleito com essa proposta. Mas não se espere que, a partir de uma escolha política, a Selic vá a 6,5% ao ano.
A definição do marco fiscal não ajuda a reduzir incertezas?
Foi feita uma escolha política, de um governo que foi eleito com essa proposta. Mas não se espere que, a partir de uma escolha política, a Selic vá a 6,5% ao ano. Há consequências no ambiente macroeconômico: mantém crescimento baixo, a inflação mais teimosa e a Selic mais elevada do que se gostaria. E tem uma questão que não é nem de comportamento do governo, é a sociedade que impõe: não aceita mais inflação fora do controle. E a retórica do governo é sempre no sentido de gastar mais. Esse é um diagnóstico equivocado, que já deveria ter sido superado. Nesse ponto, é preciso dar méritos ao Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. O Wellington (Dias, ministro) não colocou o problema debaixo do tapete. Já avisou que há distorções e que serão corrigidas.