Notícias de demissão em massa em startups de São Paulo têm inquietado quem acompanha a evolução do segmento de inovação do Rio Grande do Sul. Seria uma ressaca da aceleração da digitalização demandada pela pandemia? Ou da saída de investimentos de maior risco depois da alta do juro? Ainda que venha a ter algum reflexo no Estado, o impacto aqui será muito menor, diz Bruno Bastos, presidente da Associação Gaúcha das Startups (AGS). Em primeiro lugar, porque escala gaúcha é menor, ou seja, não há "massa". Mas também porque aqui não há negócios tão alavancados (dependentes de financiamento de terceiros) quanto no centro do país. No fundo, diz Bastos, startups não são um fenômeno temporário, mas um novo modelo para o futuro.
— Startup vai virar o novo MEI — afirma, em referência ao formato de formalização dos microempreendedores individuais, que viraram fenômeno desde que o emprego com carteira assinada entrou em declínio no Brasil.
Há risco de demissões em startups no Estado?
O número com que se trabalha no Rio Grande do Sul é de mil startups. É um dado meio mitológico, não se tem certeza sobre sua exatidão. Estamos fazendo um mapeamento, o StartupMap, com apoio do Sebrae X, para nos dar uma visão mais clara do segmento no Estado. Um dos desafios é mantê-lo atualizado, porque a vida de uma startups é curta, tanto porque algumas ficam no caminho, quanto porque a natureza do negócio é crescer muito rapidamente e deixar de ser startup. Dessas supostas mil gaúchas, cerca de 75% estão em pré-operação. Isso significa que há uma ideia e necessita validar, tem uma solução, mas precisa transformar em produto ou tem um produto e ainda depende de colocar no mercado. É o que chamamos de early stage (estágio inicial), e onde está o 'vale da morte'. Os dados são de que 90% dos negócios não sobrevivem aos primeiros dois anos.
Mas esse é um momento crítico para todos os tipos de negócio, certo?
Sim, esse é um dado geral. E o principal problema é gestão. As startups do Rio Grande do Sul têm vocações bem claras: estão concentradas em agro, saúde, varejo e produtos para empresas, especialmente nas áreas de tecnologia, informação e comunicação. No Estado, não há grande número de CVCs (corporate venture capital, fundos criados por empresas para investir em startups e outros negócios com maior risco do que o seu próprio). A maior parte dos investidores está na fase seed (semente), são investidores pessoas físicas, investidores-anjo, family offices (gestoras de patrimônio familiar). Sou investidor-anjo, invisto em vários segmentos no Estado, no Brasil e no mundo.
Nesse cenário com menor alavancagem (grande volume de recursos de terceiros), não vejo demissões em massa acontecendo, nem nas nossas maiores startups.
Ou seja, temos menos acesso a financiamento e em escala menor, é isso?
Exatamente. Nesse cenário com menor alavancagem (grande volume de recursos de terceiros), não vejo demissões em massa acontecendo, nem nas nossas maiores startups. Temos algumas gigantescas, como Warren, Nelogica, Zenvia, que se mudou para São Paulo, e outras com valuation (valor estimado de mercado) abaixo de US$ 1 bilhão. Mas não temos muitos unicórnios (startup cujo valor de mercado passe de US$ 1 bilhão). Vale frisar que startup nada mais é do que um momento de um negócio que ainda precisa de validação, de um produto escalável e de um modelo repetível. Às vezes vê a gente vê um modelo de negócio patinando porque não consegue fazer algo fundamental: captar recursos.
Ou seja, como aqui houve menor captação, agora a necessidade de enxugamento é menor?
Sim, passa por isso. Isso está ocorrendo também com grandes empresas. Quando ocorrem demissões em massa, é um sinal de que a conta foi errada. Quando uma empresa capta dinheiro, em qualquer fase, faz um plano de expansão. No universo da startups, há uma definição para os primeiros investidores, que é a sigla FFF, de family, friends and fools (família, amigos e tolos). É uma forma de comprometer menos equity (participação no negócio). Depois dos primeiros aportes, sempre há um percentual para contratar pessoas, o que é sinônimo de crescimento. Com mais pessoas, a empresa vai faturar mais e ter acesso a recursos diferentes.
Se não tiver número e perfil correto, os investidores não vão considerar coerente o objetivo de crescer cinco vezes sem estrutura de gente. Mas é muito oneroso manter folha alta. Depois de 24 meses do investimento, negócios que contrataram demais veem que está custando caro, que haviam se equivocado, e demitem.
Por ter menos acesso a financiamento, as startups gaúchas são mais enxutas?
Sim, uma startup é para ter pouca gente. Temos o conceito lean (enxuta) startup, que busca ter pouca gente trabalhando bem. O problema, mesmo, é de erro de calculo. Quando obtém recursos, um dos objetivos é contratar pessoas, que nas startups são o centro do negócio. Se não tiver número e perfil correto, os investidores não vão considerar coerente o objetivo de crescer cinco vezes sem estrutura de gente. Mas é muito oneroso manter folha alta. Depois de 24 meses do investimento, negócios que contrataram demais veem que está custando caro, que haviam se equivocado, e demitem. Não era para ter aquela quantidade de pessoas.
Então, não devemos ter ondas de demissões?
Acho que isso não vai acontecer aqui. Demissão em massa depende muito da governança e do perfil do negócio. Alguns são mais bootstrapping (usam apenas recursos já existentes), outras dependem mais de capital. Sempre pode ocorrer algum problema de gestão de investimento. Uma startup precisa captar, crescer rapidamente. Quando antes tem produto validado, menos custa. Mas não temos starutps grandes o suficiente para ter demissão em massa. Pode até acontecer algum enxugamento. Se olhar a média, temos 10 pessoas por startups no Estado, contando os fundadores. Para chegar a 50, já tem de estar valendo muito dinheiro. Então, pode haver algum desligamento, mas até por escala, não sera "em massa", porque não tem "massa" para demitir.
Serão empresas entre R$ 2 milhões e R$ 5 milhões, com 20 a 30 funcionários, que não serão globais, não serão unicórnios, mas terão lugar assegurado no mercado, com participação indireta de 200 a 300 pessoas, 30 a 50 famílias.
Nesse cenário, qual o futuro das startups no Estado?
Não temos startups gigantes, das que estão em operação, temos cerca de 300 bons negócios, que valem de R$ 4 milhões a R$ 20 milhões. Nessas, o quadro chega a 60 pessoas. A inovação está alcançando outro nível de maturidade. É um tese minha de que vamos entrar em novo momento, startup vai virar o novo MEI (microempreendedor individual, formato de formalização de negócios que cresceu com o encolhimento das contratações com carteira assinada). Serão empresas entre R$ 2 milhões e R$ 5 milhões, com 20 a 30 funcionários, que não serão globais, não serão unicórnios, mas terão lugar assegurado no mercado, com participação indireta de 200 a 300 pessoas, 30 a 50 famílias. Eventos como o South Summit e outros provocam empresas médias e grandes a comprar mais startups. Também há um movimento de fusões e aquisições entres atores de segmentos parecidos. Isso vai aumentar. A consequência é que vai haver simbiose de mercado. Por isso, tenho segurança de que não vai ocorrer demissão em massa. Ao menos não com a mesma escala de São Paulo.
Uma das causas seria uma volta ao normal da velocidade da digitalização, com menor pressão da pandemia?
A maioria das empresas não estava acelerando a digitalização, estava no passo anterior, o da transformação digital, que é a saída do analógico para o digital. Muitas das empresas transformadas têm site, resultado de esforço das pessoas de colocar seu negócio na internet, mas não têm canal de venda ou de relacionamento efetivo. A pandemia acelerou esse processo. Quanto maior a procura, mais o preço sobe, e isso levou um desenvolvedor a ganhar muito, inclusive em dólares. Uma empresa de Londres me contratou para que encontrasse 15 desenvolvedores em linguagem C++, que é extremamente específica, e programasse em unidade de 20 linhas, que é mais específico ainda. É como encontrar em Porto Alegre que fale aramaico antigo. É muito difícil. Isso fez com um CTO (diretor de tecnologia) ganhasse mais do que um CEO (presidente-executivo).
Vou utilizar uma analogia ruim, mas algumas empresas utilizam desenvolvedores como se fosse bazuca para matar mosca. Não precisam daquele tipo de profissional. Podem empregar um menos capacitado tecnicamente.
Mas a busca por desenvolvedores segue intensa, não?
Um desenvolvedor hoje é como um engenheiro do passado. Vai ter muito. Agora está muito demandado porque o mercado mudou. A nova economia transformou as relações de consumo, as relações sociais. E existe um problema. Vou utilizar uma analogia ruim, mas algumas empresas utilizam desenvolvedores como se fosse bazuca para matar mosca. Não precisam daquele tipo de profissional. Podem empregar um menos capacitado tecnicamente. Isso faz com que demandem mais esse recurso e provoquem um movimento em cascata. Quem sofre é o consumidor, porque a empresa precisa de mais margem para bancar essa contratação, que tem alta na remuneração acelerada para a nossa economia.
Por outro lado, há quem incentive startups como forma de ter "uma gurizada que trabalha muito, sem os limites da CLT", como já ouvi. Também existe isso?
Quando uma startup valida um produto, há uma exigência dos fundos, como o Bossa Nova, no Brasil, que é um fundo para estágio inicial, que celetize todos os funcionários. O fundo não investe em startup que tenha só PJ (pessoa jurídica). Nos dois casos, CLT e PJ, há riscos. Com CLT, consegue segurar melhor os profissionais, com plano de benefícios. Mas no início, faz sentido ter mais PJ, porque não consegue pagar os encargos. Uma moeda de troca na fase bem inicial é o equity, um percentual do negócio para contratar desenvolvedores. Assim, podem virar donos de um pedaço do negócio em 10 anos. A promessa é essa. PJ fica para quem pode trabalhar em outros lugares, presta serviço menos de três vezes por semana. Essa nova geração é mais descolada da CLT, o que se diz da geração alfa é que vai trabalhar em cinco lugares diferentes durante a vida. Mas startup não é meio de obter mão de obra barata. Quem vai trabalhar em startup sabe que o risco é alto, mas também tem benefícios.
As startups se desenvolveram mais, não por acaso, onde universidades e Estado (no sentido de poder público) põem a mão juntos. Aqui, as universidades estão fazendo algo, ainda em nível baixo, o Estado, nem se fala.
A mudança no cenário de taxa de juro no Brasil também tem peso na maior dificuldade de financiar startups, que foram alternativa de maior risco, mas também mais potencial de retorno quando a Selic atingiu seu piso histórico de 2% ao ano?
Tenho sido muito procurado para falar sobre isso, como as startups podem ser alvo de investidores habituados a qualquer risco como mais uma opção. Para um investidor em criptomoedas, por exemplo, uma startup tem risco baixo (risos). O desafio maior é a cultura. Uma startup leva tempo para dar retorno, de quatro a sete anos. Um investidor de bolsa, mais sensível, pode tirar dinheiro antes. Se der certo, remunera muitas vezes o valor aportado. Por isso, até nem sugiro investir em startups a quem não tenha um patrimônio considerável, porque é arriscado. É uma equação que só sem X, é muita incógnita. É uma questão de hábito, de conhecimento, de saber com vai ser relação. Na bolsa, é passiva, quem investe não pode interagir com gestores. Em uma startup, o investidor tem relação direta com os fundadores e gestores. Pode sentar, discutir os rumos. As startups se desenvolveram mais, não por acaso, onde universidades e Estado (no sentido de poder público) põem a mão juntos. Aqui, as universidades estão fazendo algo, ainda em nível baixo, o Estado, nem se fala. No Rio Grande do Sul, a redução do juro provocou interesse em ativos de risco de pessoas que nunca se interessaram, mas as temos pouca instrução financeira, ainda se pensa que dinheiro na poupança é investimento.