Em meados de 2020, portanto há quase um ano, os preços começaram a subir de forma acelerada, especialmente no atacado. Na época, alguns economistas não admitiam chamar o fenômeno de inflação, porque seria algo momentâneo. De lá para cá, o índice considerado oficial dobrou e acumula 8,06% em 12 meses, o maior nível em 25 anos, enquanto o indicador mais sensível ao dólar, o IGP-M, ronda os 40% no mesmo período. André Braz, coordenador de índices de preços da Fundação Getulio Vargas (FGV) — entre os quais a série mais impactada, a dos IGPs —, dimensionou o problema antes da maioria exatamente por observar a alta das matérias-primas básicas. Entre as causas, diz que a demora na vacinação contribuiu para pressionar a inflação. E avisa que, de novo, vai piorar antes de melhorar. Mas ao menos deve ser uma piora de curto prazo: o momento mais agudo será neste mês.
Chegamos à maior inflação em 25 anos, onde vamos parar?
Com IPCA acima de 6% em 2021. E com características diferentes das do ano passado, quando era muito concentrada em alimentos. Em 2020, 60% da inflação medida pelo IPCA veio da comida. Neste ano, os alimentos seguem em alta, mas sobem também bens duráveis (fogão, geladeira), preços administrados (gasolina, eletricidade) e, no final do ano, devemos ver os serviços se recuperarem um pouco. Isso deve ocorrer com o aquecimento da atividade econômica, que o último dado do PIB já mostrou que está a caminho. Os preços não param de subir, mas não por que as pessoas estão comprando mais, é por pressão de custo. A desvalorização cambial, agravada pela situação econômica do país, pressionou os preços administrados, como gasolina, diesel, gás de botijão. E agora, o preço da eletricidade sofre o efeito da seca, que será mais um desafio para recuperar a indústria, onde o custo da energia pesa. Tudo isso não vai permitir que a inflação convirja para a meta. Deve fechar 2021 em 6,3%, mais de um ponto percentual acima do teto (5,25% em 2021).
Os aumentos de juro não vão segurar os preços?
O aumento da Selic vai contribuir para a valorização do real. É bom porque atrai investimento externo. À medida que o juro aumenta no Brasil, passa a compensar investir aqui, mesmo com maior risco. A taxa básica também deve fechar o ano acima de 6%. Essa valorização do câmbio vai compensar em parte o aumento de preços. O problema é que os preços lá fora sobem, em dólar, mais do que a nossa valorização cambial. Mas é importante porque, sem isso, a inflação poderia ser maior. A valorização compensa parcialmente o aumento de preços de algumas commodities (matérias-primas, como soja e minério de ferro). Isso ocorre porque China e Estados Unidos fizeram políticas fiscais expansionistas agressivas, o que provocou alta de demanda nesses países. A China é uma grande compradora de matéria-prima do Brasil, e esse aquecimento aumenta o volume de exportação para lá. É bom para a balança comercial, mas ruim para a inflação, porque desabastece o mercado brasileiro.
A falta de vacina atrasou a retomada da atividade econômica, aumentou a incerteza sobre o Brasil e sustentou a desvalorização mais aguda do que em outras economias.
Falamos em pressão de preços há quase um ano, o que faltou fazer para que a inflação não subisse tanto?
Vacinar. Nossa economia foi muito fragilizada pela falta de imunização. O risco da economia aumentou por isso. Avançamos para Selic de 2% para recuperar a atividade em um momento em que a covid não permitia atividade. A falta de vacina atrasou a retomada da atividade econômica, aumentou a incerteza sobre o Brasil e sustentou a desvalorização mais aguda do que em outras economias. Sim, até o atraso da vacina pressionou a inflação. Com juro baixo e o Brasil virando epicentro do contágio, o capital que estava aqui foi para outro lugar. À medida que o juro passou a subir e a vacinação começou a avançar, voltaram a entrar recursos, recuperando o real. O Brasil não passou por um desafio maior do que outros países. A única diferença é que o nosso dirigente não entende o que é pandemia.
O Banco Central (BC) demorou a reagir, como apontam alguns analistas?
Falar mal do BC agora é fácil. Não havia outra política para tentar aquecer a atividade econômica. O BC tentou até os 45 minutos do segundo tempo. Em tempos de crise, os países contam com as políticas fiscal e monetária para reagir. O Brasil teve de riscar da cartilha a fiscal, porque chegou perto de ter dívida equivalente a 90% do PIB. O ideal teria sido investir em revitalização de portos, construção de rodovias e de hidrelétricas. Ao fazer isso, atrai iniciativa privada, contrata, cria novas operações. Como não podia fazer isso, o remédio foi fazer o dinheiro ficar mais barato, na expectativa de que a iniciativa privada investisse. Mas ninguém investe em um país com tanta incerteza. O BC tentou fazer frente ao trabalho que era da política fiscal, mas não deu.
Com a valorização do real e novas altas da Selic, vamos colher inflação menor, mas não muito menor.
E, de novo, vai piorar antes de melhorar?
Esse IPCA vai alcançar cerca de 9% em junho. Depois desacelera. O segundo semestre não deve ter IPCAs tão altos neste ano. Com a valorização do real e novas altas da Selic, vamos colher inflação menor, mas não muito menor. Ainda temos o novo desafio da crise hídrica, que tem repercussão na indústria, na agricultura, na pecuária. Mas o ápice deve ser em junho.
E no atacado, há sinais de normalização?
As commodities estão sustentando IGPs altos. A China é grande comprador e levou o minério de ferro a US$ 200 por tonelada, é uma cotação absurda. Nesse caso, houve uma espécie de ataque especulativo. Os vendedores pensaram 'a China quer? então, vamos subir o preço'. A cotação se acomodou, mas já está subindo de novo. Também pesam os fortes incentivos fiscais que as grandes economias fizeram. Nos EUA, as pessoas receberam em casa cheques de US$ 1,5 mil, puderam comprar TVs, videogames, computadores. Como não vai aumentar a demanda? E quem vai prover é a China, que vai comprar matéria-prima e orientar aumento de preços. Aí decolam as cotações de minério de ferro, alumínio, cobre e de todas as embalagens.
A inflação dos pobres foi a que mais subiu. Quando menos ganha um família, mais concentra a renda na compra de alimentos, que foi o que mais subiu em 2020.
Com a renda do brasileiro caindo, como é possível enfrentar essa inflação?
Temos dois Brasis. Quem tem emprego formal e o manteve, acabou fazendo até alguma poupança na pandemia. Não pôde viajar, ir a restaurantes, cinema, teatro. Abriu espaço no orçamento para comprar bens duráveis, arrumar a casa, acabou investindo no conforto do lar. O outro Brasil está morrendo de fome. A inflação dos pobres foi a que mais subiu. Quanto menor é a renda de uma família, mais o gasto se concentra na compra de alimentos, que foi o que mais subiu em 2020. No ano passado, houve inflação negativa em abril e maio, mas as faixas de menor renda já viam o preço da comida decolar, sem acesso a emprego. A baixa renda tinha inflação de 20%, a renda alta teve inflação negativa.
Se o PIB crescer, como se espera, vai abrir espaço para mais inflação?
Ainda que suba 5% neste ano, não vai resolver o problema do mercado de trabalho em 2021. Em todas as crises, ocorre um encolhimento do emprego que se estende no tempo. As empresas ficam mais enxutas, adotam tecnologias que as tornam menos dependentes de mão de obra. Então, a retomada da contratação são será tão fácil. Vai haver melhora no mercado de trabalho, mas não a ponto de pressionar a inflação.