Há grande ceticismo sobre a possibilidade de aprovar a reforma da Previdência em ano eleitoral. José Márcio Camargo, professor da PUC do Rio de Janeiro e economista da Opus Gestão de Recursos, desafia essa descrença. Lembra que a mais recente mudança foi feita em 1998, ano de eleição e crise econômica. Pesquisador de economia do trabalho, pobreza e desigualdade, converteu-se em um dos principais analistas da questão da Previdência, por avaliar que o sistema atual se tornou insustentável.
Qual o impacto do adiamento da reforma?
Se não fizer nada, em 20 anos o Brasil vai gastar 100% do orçamento com a Previdência. Hoje, o país tem 11% da população com mais de 65 anos e gasta 14% do PIB com Previdência e assistência social. Mais, 57% do orçamento público é destinado a pagar aposentadoria e pensão, ou seja, 11% da população fica com 57% do orçamento público e 14% do PIB. Isso não é razoável, o resto fica com muito menos. Com esse sistema, não tem investimento em infraestrutura, em educação, saúde. Todo mundo hoje diz que falta dinheiro, menos para a Previdência. Essa situação é totalmente insustentável. Se não houver reforma da Previdência, provavelmente o que vamos ter é a volta da inflação e da recessão. Não agora, porque ainda existe uma expectativa de que a Previdência vai ser reformada em algum momento. O fato de ter sido adiado não é tão importante, desde que se consiga aprovar em 19 de fevereiro.
Mas há grande ceticismo sobre reforma em ano eleitoral, não?
O ceticismo tem o seguinte problema: a reforma que o presidente Fernando Henrique aprovou foi em ano eleitoral, 1998, no meio do ano, pertinho das eleições. Ainda assim ele se reelegeu, o PSDB se saiu muito bem, as pessoas que votaram a favor em grande parte se reelegeram, de maneira que não é uma desculpa razoável. O problema é que esta reforma está combatendo privilégios muito importantes, principalmente de grandes corporações, fortes, e do serviço público.
O principal problema é a Previdência pública?
Tanto a pública quanto a do INSS tem problemas. A Previdência urbana teve déficit em 2016 de R$ 396 bilhões e atende a 32 milhões de pessoas. A rural tem déficit de R$ 111 bilhões. E a do setor público vai ter neste ano déficit de R$ 78 bilhões para atender a 1 milhão de pessoas. O déficit per capita no setor público é de R$ 78 mil em 2017. A sociedade transfere para cada aposentado do setor público R$ 78 mil por ano. Os aposentados do setor público estão todos entre os 15% mais ricos da população. É verdade que o déficit do INSS também é muito alto, mas atende a 33 milhões de pessoas, que dá um déficit per capita de R$ 6 mil por ano.
Faltou explicar isso melhor à população?
Discordo da avaliação de que o problema foi o marketing do governo. A proposta original atacava grande parte dos problemas, não apenas os privilégios: aposentadoria rural, que tem um déficit enorme, e tem sinais claros de fraude. Hoje existem 6 milhões de pessoas aptas a receber aposentadoria rural. No entanto, há 9 milhões de aposentados no setor rural. Ou seja, 50% a mais do que as pessoas que cumprem as condições para receber aposentadoria, o que é sintoma de fraude. O governo não poderia ter dito que era contra os privilégios. Fez o marketing que considerei honesto, porque mostrava que estava atacando o problema fiscal. Agora, com essa nova proposta, tirou o que afetava os grupos mais pobres: a aposentadoria rural, o benefício de prestação continuada, atenção aos 65 anos. Agora pode fazer o marketing honesto de que a proposta combate privilégios.
A imagem do governo comprometeu a aprovação?
O que comprometeu foi a gravação do presidente Temer com os donos da JBS. Uma semana antes do episódio, tinha quase conseguido os 308 votos necessários para colocar em votação. Quando veio a gravação, esse esforço se perdeu, e o governo teve de se esforçar para evitar a queda do presidente Temer. Agora está voltando. A questão da corrupção em si, não acredito que tenha afetado. O governo aprovou uma quantidade enorme de reformas importantes, difíceis, no último ano e meio, apesar de toda essa imagem de que tem alguma corrupção no processo. A gravação realmente afetou, porque a partir disso houve duas denúncias contra o presidente e ele teve de se dedicar a derrotar as denúncias do Ministério Público.
A falta de debate não deu espaço para o argumento de que não existe déficit na Previdência?
Acredita nessa tese quem vai ser prejudicado pela reforma. O que existe na verdade são interesses particulares que estão sendo prejudicados. É impossível não resolver o problema sem fazer esse tipo de coisa porque existem muitos privilégios que precisam ser combatidos. São, em geral, funcionários públicos, do Ministério Público, do Ministério da Fazenda. Tem um marketing desse grupo que diz que vai acabar com sua aposentadoria. É mentira, não vai acabar com a aposentadoria de ninguém. Vai forçar alguns funcionários públicos a trabalhar mais tempo para conseguir aposentadoria integral. Os que entraram antes de 2003 se aposentam com o valor do último salário e têm direito a todas as promoções e reajustes de quem está na ativa. É isso que essa proposta está tentando acabar.
É possível aprovar em ano eleitoral, como em 1998?
É possível passar, sim. Ter adiado em vez de ter cancelado é um sinal de que eles estão confiantes de que podem ganhar. Existe uma probabilidade de que consigam passar essa proposta.
Resolve o problema?
Resolver, não resolve, mas melhora muito. Essa proposta gera economia de R$ 480 bilhões em 10 anos, algo próximo a R$ 50 bilhões por ano. É algo bem substancial. A proposta original economizava R$ 800 bilhões em 10 anos, então é 60% da original. Daqui a alguns anos, será necessária outra reforma. O Brasil tem dois grandes problemas. Um é que a Previdência é muito generosa para grupos privilegiados. Mas também para o resto da população. Aqui a taxa de reposição, a relação entre o valor das aposentadorias e pensões e o salário da pessoa na ativa, é em média 85,5%. A média da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que reúne os países mais ricos) é 55%. O sistema brasileiro é muito generoso em geral, mais para os pobres do que para os ricos, exceto para o privilegiados. Para estes, é totalmente fora de propósito. O segundo problema é que o Brasil está envelhecendo muito rápido. Hoje, em amostra de 11 países que importam, é o sétimo mais jovem. Em 60 anos, será o sétimo mais velho, porque a sobrevida aos 65 anos está subindo e a taxa de natalidade, caindo, ambas muito rapidamente. Então vamos ter de fazer várias reformas para acompanhar o envelhecimento da população.