Em meio à sensação de impunidade quanto à delação dos irmãos Joesley e Wesley Batista, há expectativa de que leveza na área criminal seja compensada na empresarial. Sócio do escritório gaúcho Andrade Maia em Brasília e professor de Direito Constitucional, Fabrício Medeiros explica a diferença dos dois processos, seu alcance e sua limitação.
Além de permitir contratação com o poder público, qual a função do acordo de leniência?
Pode ter várias consequências positivas, tanto para governo quanto para empresas, da extinção da punibilidade até o benefício de voltar a contratar com o poder público. O leque é mais amplo.
Existe a redução de multa e a redução das penas. Isso será pesado pela Secretaria de Direito Econômico (SDE), que fará a análise com o Ministério Público. Há uma discussão forte sobre isso. Entendo que não existe a possibilidade de acordo de leniência sem a participação do Ministério Público.
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Qual a consequência de não ter acordo de leniência para uma empresa envolvida em crimes?
Há penalidades aplicáveis tanto na esfera administrativa quanto na cível. Na criminal, só as pessoas físicas respondem pelos delitos. Primeiro, a grande isca para o acordo de leniência é o grupo entregar, para o Ministério Público ou para a SDE, informações que representem a cessação da prática ilícita.
Segundo, dê condições para promover a responsabilização dos demais infratores. Ao atender a esse chamariz, a essa isca, a empresa reduz, e muito, o peso das sanções que podem ser aplicadas.
Em casos muito graves em que não há acordo, as sanções podem levar à extinção das empresas?
Sim, sem dúvida. Pode haver crime contra a ordem econômica e as relações de consumo em que, com a multa, pode haver a extinção de empresas.
Em que casos isso é possível?
Em muitos. É possível enquadrar o acordo de leniência na Lei Anticorrupção e na Lei de Licitações. De maneira expressa, é possível em casos contra a ordem econômica e as leis de consumo.
Foi inábil a recusa da JBS ao acordo que previa multa de 5,8% do faturamento da empresa?
Concordo. O estrago feito e as sanções a serem aplicadas contra a JBS sem acordo de leniência ultrapassarão, e muito, a proposta feita pelo Ministério Público.
É possível imaginar por que houve a recusa?
Não faço ideia (risos).
A renegociação partirá de um valor mais alto?
A lógica é essa. Quando um acordo firmado não é cumprido, até por caráter pedagógico, a tendência é de que se diminua o benefício proposto inicialmente. Se isso não ocorrer, quem tem interesse joga com o poder público, negociando, no sentido mais chulo da palavra.
A técnica que conhecemos aponta que, rejeitada a primeira proposta, nada impede que outro acordo seja discutido, sem as mesmas condições de benefícios do primeiro. Tem de ser mais severo.
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Diante do consenso de que o acordo de delação da JBS foi brando, o de leniência pode compensar?
Do ponto de vista legal, não. São crimes e atores diferentes. Na delação, há corrupção ativa e passiva, caixa 2, talvez faturamento de contratos com o poder público. No acordo de leniência, há crime contra a ordem econômica e as relações de consumo. Agora, é lógico que, informalmente, no pacote, pode ser que surja esse tipo de negociação.
A Lei Anticorrupção no Brasil deveria ser tão dura quanto a americana?
Para nossa realidade, a lei é bastante rigorosa. Na comparação com a americana, é um pouquinho mais branda. Não se pode aplicar aqui uma lei concebida em realidade completamente diferente. Esse tipo de importação alienígena não dá certo.
Se conseguirmos dar efetividade para a Lei Anticorrupção, teremos um salto incrível, do ponto de vista republicano, nas relações público-privadas. Depois disso, pensaremos em ajustá-la. Se for o caso, até enrijecê-la. No momento, não adianta sermos mais realistas do que o rei.
Esse momento testa a capacidade de fazer cumprir as leis?
A democracia está em constante construção. Estamos construindo nossa democracia e nossa república. É uma fase de estupefação. Como democrata, constitucionalista e liberal, não posso admitir que se ultrapasse a linha do Estado de Direito.
É preciso coragem para enfrentar o que estamos enfrentando e assegurar a todos os envolvidos, investigados e acusados, as garantias de defesa. Multiplicação de instâncias investigativas? Concordo. Ampliação dos requisitos de investigação? Concordo. Incrementos nas sanções? Concordo. Mas não arredo o pé da necessidade de se assegurar os mecanismos para apresentação de defesas.
Temos de ficar atentos aos limites de atuação do Ministério Público, da polícia. Um exemplo corriqueiro nas últimas operações: as conduções coercitivas. Só se fazia isso quando quem era requisitado (para prestar depoimento) não comparecia. A construção da nossa república está acontecendo, de fato, agora. Sou otimista.