Transformada em notícia que correu o mundo, a compra de um par de sapatos de couro marrom por Michel Temer, em Hangzhou, na China, embute uma situação, no mínimo, irônica. Desde 2010, depois de um longo processo que demonstrou como a concorrência desleal dos calçados chineses dizimava empregos por aqui, o Brasil aplica uma sobretaxa sobre os produtos com origem na China. A principal alegação foi de dumping: o preço cobrado aqui era inferior ao da média internacional.
Em 2010, a vitória da indústria brasileira no processo representou a aplicação de uma salvaguarda: cada par de sapato chinês que entrasse no Brasil teria de pagar uma sobretaxa equivalente a US$ 13,85. Em março passado, o mecanismo de defesa da concorrência foi renovado por mais cinco anos, com a sobretaxa reduzida para US$ 10,22.
Como a cobrança praticamente inviabiliza a maior parte das vendas de calçados do país asiático para o Brasil, muitos exportadores chineses tentaram usar mecanismos de triangulação, fazendo seus produtos se passarem por vietnamitas ou indonésios. Industriais brasileiros também denunciaram esse mecanismo e obtiveram proteção contra o estratagema.
Presidente da Abicalçados, a entidade que capitaneou a luta pela aplicação da sobretaxa, Heitor Klein tinha um comentário na ponta da língua para evitar aperto diplomático no sapato:
– Ele estava lá. Se gostou, pode comprar. A China também faz sapato bom. O que combatemos não é o sapato chinês, é a prática desleal.
Além de ecoar antigos problemas entre a indústria chinesa e a brasileira, a compra ocorreu em meio à mais importante feira mundial do segmento, em Milão, decisiva para os negócios do setor. Mais do que a compra dos sapatos marrons de Temer, o que inquieta os calçadistas, neste momento, é o câmbio, diz Klein. Dólar a R$ 3,20 já é ruim para os negócios, e Klein não duvida que a cotação recue mais.
– O juro tende a ficar estável, o dólar, a cair, com entrada de capital especultivo e produtivo, a carga tributária não deve ter recuo notável, as reformas previdenciária e logística só terão efeito a médio e longo prazo. Sem câmbio competitivo e sinais de retomada no mercado interno, vai ficar difícil – observa Klein.