O Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi) tem sido quase monotemático nos últimos oito anos ao apontar a perda de relevância do setor fabril na economia brasileira. Nesta semana, a entidade surpreendeu ao apresentar uma visão mais positiva, mencionando até o fato de a indústria ter se tornado a "matriz do ajuste externo". Rafael Cagnin, economista do Iedi, explica o que anima e o que ainda preocupa nesse momento de transição da economia brasileira.
A produção industrial teve alta de 1,1% entre maio e junho permite festa?
A alta veio mais forte do que no meses anteriores. Em grande medida, pela base de comparação da indústria de transformação, que em maio ficou estável. A indústria de transformação cresceu 1,3% em junho, e nada em maio. Isso explica o indicador geral. É um pouco mais forte do que realmente é. Esse é um dado específico, pontual. A avaliação do que ocorreu no primeiro semestre é de que o aprofundamento da crise se estancou. A piora sucessiva da indústria parou, só que ainda em nível muito baixo de produção. O quadro ainda é muito negativo, embora na série com ajuste sazonal existam sinais de que o pior ficou para trás. Esses sinais são corroborados por variações positivas da indústria em quase todos os meses de 2016, na série com ajuste sazonal (que elimina diferenças relativas à época do ano). Isso é produto, sobretudo, da indústria de bens de capital, que só cresceu neste ano. Isso claramente é uma ruptura da trajetória que a gente viu nos últimos anos, principalmente em 2015.
É uma virada para toda a indústria?
Essa ruptura aparece na indústria geral, mas mais claramente na de bens de capital, que tem crescido a taxas que não ficam tão próximas de zero, são mais expressivas, em todos os meses de 2016. Mas nunca devemos perder de vista que a indústria de bens de capital foi uma das que mais caíram no ano passado. Houve meses em que caiu 30%, isso é muita coisa. Temos um início de reversão de trajetória muito incipiente e a partir de uma base muito baixa de produção. A produção de bens de capital é o setor que mais apresenta sinais positivos. Aí acho que há quatro fatores que explicam essa trajetória.
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Quais fatores?
Um é a própria dinâmica da crise. Depois de quase dois anos de queda em bens de capital, os projetos de investimento eram adiados todos os meses. Depois de tanto tempo caindo muito, é normal que estanque em algum momento, porque em algum instante é necessário repor equipamentos. A reposição e a substituição de máquinas tornam-se obrigatórias depois de tanto tempo de cortes de projetos.
O segundo é o ajuste de custo. Muitas empresas estão com a corda no pescoço em termos financeiros. A perspectiva de ajuste via ampliação de receita é baixa, porque o mercado doméstico continua ruim. No mercado internacional, muitas estão conseguindo exportar, e têm algum alívio. A estrutura industrial é muito mais voltada para o mercado interno do que para o externo. Então, exportar ajuda muito, só não resolve a situação, especialmente em um ambiente em que a taxa de câmbio não é tão favorável quanto foi no final do ano passado. Temos ao menos 20% de apreciação nominal do câmbio entre janeiro e junho, o que é bastante. Se não há como ajustar a situação financeira pela receita, é preciso fazer pelo custo. Isso implica modernizar a estrutura produtiva. Aí pode reativar a compra de bens de capital para ampliar eficiência.
O terceiro fator é a venda externa. Exporta-se, por exemplo, caminhões, automóveis, equipamentos de transporte. O câmbio mais favorável no começo do ano reativou algumas vendas ao Exterior.
O quarto fator é construção civil. Caiu muito no ano passado, já havia caído muito em 2014, mas em 2016 esse processo deu uma arrefecida. Os estoques de móveis não vendidos vêm sendo digeridos, o que abre a possibilidade de retomada de projetos de construção e, consequentemente, a demanda de bens de capital para a construção civil. Ainda está em queda. A produção de bens de capital para construção civil caiu cerca de 10% no primeiro semestre, mas havia caído mais de 50% em 2015. É ruim, mas longe de ser a mesma catástrofe. A melhora da confiança tem algum papel, mas ainda é muito incipiente, preliminar, para impactar estatística.
Creditaria mais a esses quatro fatores: a dinâmica da crise, que impõe reposições, redução de custos, vendas externas e a melhora da construção civil.
Outros dois setores importantes têm mais estabilização do que de crescimento, que são bens intermediários, semiduráveis e não duráveis, com a indústria de alimentos. Nesses segmentos, há alternância de variáveis positivas e negativas, o que não dá muita esperança, mas é um alento, porque mostra estabilização da crise. O segmento de bens de consumo duráveis é o que menos mudou, caiu em quatro dos seis meses de 2016. Só que em maio e junho cresceu. É pouco, preliminar, sobretudo para um setor que caiu tanto em 2015. Mas desde 2013 não havia dois meses sucessivos de alta. Fico com um pé atrás, porque o mercado de trabalho continua muito ruim, a renda das famílias é ruim, e o mercado de crédito continua ruim, sem sinais de melhora.
Em resumo, por que quatro meses de alta da indústria no ano não representam recuperação?
Ainda não há recuperação porque é pouco tempo, e as variações frente o ano passado continuam negativas em patamares expressivos. Já foram bem piores. O setor de bens de capital caiu mais de 30%, agora cai 10%, por exemplo. Só que cair 10% depois de cair 30% durante vários meses ainda é muito grave. Então, à exceção de junho, em que houve taxas negativas menores frente a junho de 2015, todos os outros meses apresentam taxas preocupantes para todas as categorias. Essa intensidade de junho talvez seja pontual. Temos que avaliar isso nos próximos meses.
Essa variação positiva mostra que há mudança de sentido, mas ainda em um patamar baixo. Por isso que não é possível comemorar. Parte do que de melhor temos visto em 2016 se deve a uma taxa de câmbio mais competitiva. O problema é que esse fator não é mais tão favorável, e pode jogar areia na engrenagem. Por isso, tenho certo receio de falar que é uma trajetória sustentável, que daqui para frente será só para cima. Se a taxa de câmbio voltar a apreciar no segundo semestre, pode estancar o processo de recuperação e colocar a indústria em uma nova fase de crise.
É mais reposição de parte do que foi perdido do que recuperação?
É o início da reposição de tudo que foi perdido. E muito foi perdido. Os últimos seis meses não fazem nem cócegas. Por isso, é preliminar e sujeito a reviravoltas. É um momento delicado.
Já se vislumbra um horizonte melhor para polos metalmecânicos, como o do Estado?
No Sul, havia indícios de que a situação estava menos ruim do que em São Paulo e no Rio, por exemplo. A estrutura industrial do Rio Grande do Sul é mais especializada em um ou outro setor. Agora, vai depender dos setores aos quais está associada a produção industrial do Estado. A situação estava mais promissora no Sul. Para o dado do semestre, temos que olhar regionalmente.
Com o ajuste sazonal, o Rio Grande do Sul cresceu 4,4% em maio, mas caiu na maior parte dos meses. Vinha em trajetória favorável de novembro a janeiro, mas voltou a cair de fevereiro a abril e, em maio, voltou a crescer. Então esses 4,4% recompõem a perda de fevereiro a abril, que não foi pequena. Na comparação com o ano anterior, o Estado já esteve muito pior. Em 2016, não está bom, mas as taxas subiram. Não é um cenário tão negativo.
O que o Iedi quer dizer ao afirmar que a indústria virou a matriz do ajuste externo?
O que gera superávit da balança comercial geralmente vem de produtos primários, as commodities, tanto minerais quanto vegetais. Isso continua lá, com saldo positivo, com preço um pouco menor nos últimos meses. O saldo comercial ocorreu porque o déficit da indústria de transformação caiu muito. No primeiro semestre, foi 10% do que foi o déficit da indústria de transformação no primeiro semestre de 2015. O setor agrícola e extrativo gera um saldo positivo, que era muito reduzido, neutralizado pelo déficit da indústria de transformação. Mas, em 2015 e, principalmente, em 2016, a indústria está se ajustando. Está caminhando para um superávit da indústria de transformação. Isso faz com que o saldo total do país tenha crescido muito. Então, é por isso que o responsável pela melhora do saldo comercial do Brasil é o avanço do saldo comercial da indústria de transformação.
A indústria recuperará espaço no PIB?
Esperamos que sim (risos). Neste ano, claramente não. Precisamos recompor cadeias, ou tentar, porque nem tudo será recuperado. As pessoas esquecem que a crise pode ser cíclica, passa, mas deixa um espectro estrutural para trás. Ou seja, nem todo setor que for reorganizado vai conseguir se reestruturar no futuro. Por isso, deve-se evitar crises da magnitude que a indústria vê desde 2014, sobretudo. Acho que deve recuperar, mas não deve ocorrer tão facilmente, nem tão rapidamente.
Há alguma projeção para isso ocorrer?
Não. São movimentos estruturais. Temos que ver como as coisas vão evoluir.
Como a substituição de importações beneficia a indústria?
A indústria nacional empregou, comprou insumos, gerou emprego internamente. Quando você deixa de importar um produto para comprar um similar nacional, você deixa de gerar emprego e renda em outro país para gerar emprego e renda no Brasil. É por isso que é positivo, principalmente em um cenário tão ruim.
A queda das importações pode ser prejudicial em algum sentido?
Pode, quando falamos de importação de bens de capital. Não produzimos todos os tipos de máquinas e equipamentos, compramos parte de fora do país. A contração, quando vemos que a importação de bens de capital caiu fortemente, é um sinal de que o investimento está minguando, com efeitos negativos secundários, como perda de eficiência e qualidade. A redução de importação é um problema, sobretudo quando falamos de máquinas e equipamentos.
Esses aspectos afetam a modernização dos parques fabris?
Sim. É um grande problema. A crise pode passar, mas deixa rastros. Muito tempo com quedas bruscas de investimentos gera obsolescência dos parques. Consequentemente, perda de competitividade frente aos concorrentes, e também frente à indústria do resto do mundo.
É possível estimar um período para a recuperação chegar ao mercado de trabalho?
Vai demorar. O Iedi não trabalha com projeções, mas do ponto de vista do emprego vai demorar, porque há o risco de nem tudo ser recomposto. Investimentos feitos para racionalizar custos e aumentar eficiência, em parte, significam substituir três ou quatro trabalhadores por um ou dois, operando uma máquina mais moderna. Passada a crise, a máquina vai continuar exigindo um ou dois funcionários, e não três ou quatro. Isso faz parte do rastro da crise. Nem todos os empregos que foram destruídos serão recriados.
Muda o padrão de trabalho industrial pós-crise?
Pode mudar. Depende do padrão de investimentos sendo feitos para a recomposição. Empresas e setores podem ter desaparecidos por conta da crise. Essa desorganização da estrutura industrial tem impactos de longo prazo sobre o emprego.
Por que o Iedi aponta riscos do câmbio, e quais são?
A única boa notícia que a indústria teve em 2015 foi o câmbio mais competitivo. Frente à crise da economia doméstica, as empresas foram direcionadas para ampliar participação de mercado lá fora, o que também não está fácil. O comércio internacional está baixo, e a concorrência, muito acirrada. Depois de algum tempo, as empresas que puderam e conseguiram foram atrás de mercado para exportar, mas com a cotação de janeiro, de R$ 4. Hoje está em R$ 3,20.
Também houve volatilidade acentuada, que dificulta o cálculo econômico na hora de exportar. A revalorização do real tira um estímulo para a produção industrial. A apreensão vem do fato de que, na história recente do país, vimos o uso do câmbio apreciado para controlar a inflação. É um risco que permanece, pode ocorrer novamente, inclusive porque o Banco Central (BC) nunca assumiu utilizar a taxa de câmbio para controlar a inflação. Pode continuar não assumindo e fazendo. E não há expectativa, no mercado internacional, de que a situação de juros baixos se reverta. No Brasil, deve cair lentamente. Isso faz com que o diferencial entre o Brasil e o restante do mundo fique grande. Há apreensão porque vimos processos semelhantes. Seria um balde de água fria.