Na história recente de um país que já enfrentou graves crises institucionais, ele foi testemunha privilegiada de dois momentos de ruptura: o golpe de 1964 e o impeachment de 1992. Marcílio Marques Moreira, 84 anos, estava ao lado de Santiago Dantas, ministro da Fazenda de João Goulart, em 1963, e era ministro de Collor em 1992. Com essas experiências, Marcílio é uma voz crítica mas ponderada do momento atual.
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Qual a crise mais grave, a política ou a econômica?
As duas são muito graves, inclusive porque se realimentam. A crise política é grave, e por isso paralisa qualquer iniciativa, qualquer medida legal ou regulatória que possa aliviar a situação econômica. Ao mesmo tempo, a retração da economia, com inflação muito alta e desemprego crescente, realimenta a crise política. Temos uma realimentação mútua em detrimento da situação geral que, além da política e da economia, tem fatores extremamente graves, como a crise ética que levou aos desmandos na Petrobras e, com isso, minou profundamente a confiança, tanto de consumidores quanto investidores. A quebra de confiança foi muito grave, se olharmos a curva do ano passado, observamos um movimento íngreme para baixo. A essa desconfiança, pode-se dar outro nome, medo. Temos medo de investir, medo de comprar. Não se sabe o que vai acontecer amanhã. Todos estão se precavendo, sendo o mais prudentes possível. Não se sabe se pode.
Apesar da gravidade, o mercado reage por emoção ou porque só olha o curto prazo?
São as duas coisas, tanto o emocional quanto o foco no curto prazo. O mercado, inclusive lá de fora, considera que a situação passou a ser insustentável e que uma mudança de governo levaria a uma situação melhor. São pessoas convencidas de que, como está, a coisa é insustentável.
E mudar o governo leva a uma situação melhor?
Seria uma mudança muito significativa para recompor a situação, reconstruir o país. País está em desconstrução, é preciso reconstruir, e isso vai levar tempo. A economia responde à realidade, mas também às expectativas de futuro, ao ambiente de negócios. O próprio governo atual poderia tomar medidas básicas, que aparentemente não são heroicas, que infundiriam um novo espírito. Há um aspecto muito preocupante, que é o fato de o governo ainda não ter se dado conta da gravidade da situação. Há uma crise inédita, porque tivemos uma queda de 3,8% no PIB em 2015 e, há perspectiva de outra queda igual. Só há um resultado pior nos registros, a queda de 4,3% em 1990, mas o ano seguinte já veio com uma pequena recuperação. Mesmo em 1992, havia sua situação fiscal e monetária mais controlada, embora a inflação estivesse em 20% ao mês. Na atividade, havia relativa estabilidade, não uma tendência decrescente.
Esse momento é semelhante aos meses que antecederam o impeachment de Collor?
Na época, o país tinha um Congresso mais atento e mais disposto a construir uma solução. Tínhamos grandes líderes, como Ulysses Guimarães. O Nelson Jobim escreveu em seu artigo de dezembro que o doutor Ulysses era contra o impeachment mas, quando se tornou inevitável, depois da entrevista do irmão do presidente (Pedro Collor), reuniu o PMDB e disse que daria apoio ao impeachment, mas era preciso também dar estabilidade ao ministério para que o país mantivesse a governança na área econômica. Hoje não temos esse tipo de liderança, como o doutor Ulysses e outros. O Fernando Henrique Cardoso também estava muito ativo na época e era muito respeitado.
Em que momento um impeachment se torna inevitável?
Isso é muito difícil de prever. Estamos em um momento que parece estar perto disso, mas do ponto de vista econômico ainda não chegou lá. Existem até alguns que acham que esse ponto de inflexão ocorreria com o agravamento da situação social, mas isso por enquanto não houve. A população está bem calma.
Qual é o peso da suposta delação de Delcídio Amaral e a condução coercitiva do ex-presidente Lula?
Tivemos em cinco dias úteis, na semana passada, três graves indícios de inflexão. O anúncio não confirmado, mas também não desmentido, de delação premiada envolvendo o governo, o dado do PIB, que foi extremamente grave, e o depoimento coercitivo do ex-presidente da República, um fato quase inédito. Essa conjunção indica a mesma coisa que aconteceu na área econômica no ano passado. A velocidade da queda, do agravamento do ambiente político é tão rápida quanto a piora da curva econômica no ano passado, a curva da queda da confiança e da atividade econômica, do aumento da inflação. Essa velocidade de queda acaba tendo o efeito de um colapso, e o governo não parece estar percebendo. Não houve resposta do governo a uma queda de 3,8% do PIB. Há inapetência no governo de ver a realidade. Esse é um dos grandes problemas do governo, não ver a realidade. Se voltar 500 anos e ver os princípios do Maquiavel (Nicolau Maquiavel, autor de O Príncipe, espécie de manual pragmático para governantes), uma das virtudes do príncipe (no caso, o governante) é ser um paciente ouvinte da verdade. Em crises, a primeira vítima é sempre a verdade, e desta vez, foi muito vitimizada.
Como se reconstrói a governabilidade?
Não está se vendo pessoas agindo e se comportando como se tivessem interesse nisso. Mas crises, em geral, têm o dom de relevar virtudes e qualidades até em pessoas até improváveis. Essa é a esperança. Uma crise dessa intensidade pode acabar criando incentivo para políticos, empresários, pessoas do sociedade civil acordarem e se disporem a realmente conversar e alcançar um consenso mínimo, olhando menos os interesses pessoais e mais do país. Criar algo como o que foi feito com grande maestria na Espanha, quando morreu o Franco (Francisco Franco, ditador que ficou no poder por 39 anos). É preciso buscar o consenso de todas as forças para mostrar uma direção. Um grande jurista francês, Maurice Hauriou, disse que, para funcionar, o mais importante para qualquer comunidade, seja empresa, seja ONG, seja país, é ter ideia clara da obra a realizar. É isso que não está havendo, o leit motiv, como dizem os alemães, que levar esse país, essa comunidade, essa população a bom termo.
Ainda é possível evitar o impeachment ou outro tipo de encurtamento de mandato da presidente Dilma?
Não se identifica nenhuma proposta, nenhuma medida que possa reverter isso. Teria de ser algo realmente heroico. Não performático, mas de compreensão da gravidade da situação e da relevância das medidas. Não precisa ser um grande pacote, mas uma política clara, que mostre uma direção. As medidas podem ser tomadas uma depois da outra. O que é preciso é saber a que porto seu navio tem de chegar. Na mitologia, havia uma divindade, um deus dos portos, que se chamava Portuno. Uma crise às vezes traz oportunidades escondidas, difíceis de decifrar. Mas é extremamente importante que todos procurem decifrar esse quase mistério, tirar a coberta para encontrar o caminho. Seria uma luz para iluminar nosso caminho.
Em que circunstância o senhor chegou a presidir o comitê de ética do governo Lula?
Fui nomeado no governo FHC para o Comitê de Ética Pública, e fui o único reconduzido. Tinha mandato de três anos, de 2002 a 2005, e fui reconduzido para mais três. Foi um período relativamente mais calmo, embora tenha havido o mensalão. Do ponto de vista estrutural, o então novo governo aceitou as políticas principais do governo FHC. E era uma comissão de ética, não uma comissão de investigação, que passa para a área judicial. Chegou um certo momento em que a coisa estava ficando mais complicada, porque a comissão não estava tendo a atenção dos dirigentes. Um desses momentos foi quando houve o voto para a impossibilidade de ministro de Estado ser presidente de partido, porque havia um flagrante conflito de interesses, então pedi demissão. Não havia mais condições. Infelizmente, vejo que o comitê de ética perdeu muito de sua relevância.
Ficou surpreso com as revelações da Lava-Jato?
Naquela época, nunca se vislumbrou o que realmente ocorreu. Fiquei realmente muito chocado com as revelações que surgiram. Já havia passado por outro momento difícil, além de 1992, em 1963, quando trabalhava muito próximo do então ministro da Fazenda, Santiago Dantas. Foi também um momento em que as coisas estavam piorando muito, política e economicamente. Havia pessoas fantásticas no governo. Santiago começou um movimento chamado Frente Ampla, mas as forças da esquerda negativa e da direita raivosa estraçalharam o projeto.
O senhor vê semelhanças entre este momento e 1964?
Como problema, sim, como solução, não. Mais do que 1964, 1963 foi um ano muito difícil, houve uma sucessão de primeiros ministros, muitos incapazes. Eram pessoas que não tinham a menor capacidade para o cargo. A Frente Ampla foi a última tentativa de Santiago Dantas, mas fracassou. Hoje os militares têm uma situação muito diferente, eles leem a realidade, são muito disciplinados e estão conscientes. Tenho acompanhado, tenho sido convidado a falar na Escola Superior de Guerra.