“O relato do professor inocentado” foi o título da excelente coluna de Daniel Scola na quinta-feira passada em GZH. O professor estava em São Paulo e pega um voo de volta para Porto Alegre numa madrugada. Durante o trajeto, é acusado de assediar uma criança que estava sentada ao lado da mãe. Desembarca preso pela Polícia Federal e começa um calvário de três anos para ser absolvido.
Conhecia a história desde o camarote do inferno. O dito professor era meu paciente. No dia recebi um telefonema informando a acusação e o desdobramento. Era tão inverossímil, que minha hipótese é de que algo orgânico surgira. Quando alguém muda sua personalidade radicalmente, faz coisas absurdas, pensamos em tumor cerebral.
Ou talvez tivesse me enganado, ele não teria revelado seu lado obscuro. Difícil, trabalhei em penitenciária: já escutei assassinos, estupradores, parricidas, enfim, criminosos de verdade, sei quando encontro um. Além disso, ele foi meu paciente durante anos, e perversos jamais procuram ajuda; eles vivem em sintonia com suas taras.
Ele tinha problemas, tanto que se tratava, mas estava a léguas do que foi acusado. Meu divã conhece toda a gama dos devaneios eróticos, porém esse professor não tinha nenhuma tentação pedófila.
O caso era, como veio a se provar, um mal-entendido que custou três anos de tortura. Menos mal que a prisão foi só no início, depois tornozeleira eletrônica. Porém ele perdeu emprego, amigos, a cidade, enfim, teve sua vida rasgada ao meio. Além disso, leva uma marca indelével, sempre se pode dizer que apenas não conseguiram provar. A absolvição não o deixa onde ele estava, o prejuízo é irreparável.
Vivemos uma bem-vinda mudança na questão do abuso de mulheres e crianças. Nunca essa ferida esteve tão à mostra e discutida, estamos cientes de que o dano de um abuso é imenso. Parte do trabalho dos terapeutas é remontar pessoas destroçadas, que sofrem nas sombras do silêncio.
O drama é que estamos com a sensibilidade demasiado aguçada para a questão. A pressa em corrigir e punir esses crimes leva a um açodamento em que se põem os pés pelas mãos. Quando uma denúncia surge, ninguém consegue pará-la, mesmo que insensata. Funciona como os cancelamentos, os julgamentos sumários pelas redes sociais, quando uma matilha de justiceiros sai mordendo o bode expiatório da vez. Que urgência em aparecer do lado certo da lei, por quê?
Esse processo não consistia, tanto que a acusação pediu absolvição. O pesadelo é que pode acontecer com qualquer um. Uma acusação leviana e subjetiva pode destruir uma reputação, independentemente de uma vida pregressa correta.
Paradoxalmente, meu paciente sofreu do mesmo mal que atinge as pessoas verdadeiramente abusadas. Quando elas conseguem pedir socorro, no princípio, ninguém acredita nelas.