Esta é uma história cujos nomes dos protagonistas não podem ser revelados por força de lei, pois envolve uma criança de seis anos. Mas é uma história que precisa ser contada, mesmo que sem as identificações, para garantir que o desfecho sirva para reflexão.
A revelação também é necessária para fazer justiça com um homem, anônimo para a maioria, conhecido por alguns, que foi preso e processado por um crime hediondo sem que houvesse uma prova material — o processo foi baseado no depoimento da familiar da suposta vítima.
É a história de um professor com uma trajetória exitosa que embarcou num voo em São Paulo contente com os rumos de sua carreira e desembarcou em Porto Alegre escoltado por agentes até a carceragem da Polícia Federal.
O que aconteceu dentro de um avião, na madrugada de 4 de dezembro de 2017, aos olhos de dezenas de passageiros, para que uma pessoa sem antecedentes criminais, querido e admirado por colegas e alunos embarcasse feliz e fosse preso ao descer do avião?
— Um tremendo mal-entendido sem prova alguma — diz ele.
Esta é a história de um processo que tem como base um relato conflitante de uma mãe: o professor teria tocado a perna da filha, que estava sentada na poltrona ao lado. Na versão que deu para a Polícia Federal, ela disse que teria ocorrido num determinado momento do voo. Perante um juiz, durante o processo, ela não conseguiu ser precisa no relato.
O professor perdeu o emprego, a reputação e alguns amigos e foi obrigado a sair da cidade. Foram mais de três anos de agonia, o que o levou a pensar em medidas extremas, e que acabou em fevereiro deste ano, quando a Justiça Federal em Porto Alegre decidiu por inocentá-lo, depois que até mesmo a acusação, o Ministério Público (MP), pediu a sua absolvição.
Esta é uma história cheia de lições: acusação sem provas, estigma, preconceito e julgamentos precipitados. O passo a passo do que aconteceu desde o episódio até o julgamento pela inocência do réu pode ser conferido a seguir, nas palavras contadas por ele mesmo, na primeira vez em que foi ouvido, fora do Judiciário, sobre o caso. Foram longas conversas para tentar reconstituir uma história cheia de lições.
O avião
"Naquele dia, eu estava voltando de uma semana de curso presencial em São Paulo. Eu estava muito feliz porque era algo que eu estava gostando de fazer. O voo era de madrugada (3h10min). Eu fui para o aeroporto, tarde da noite, do jeito que eu estava durante o dia. Não tomei um banho, não me preocupei com a aparência, não troquei de roupa.
O voo vinha do norte do país, era um daqueles voos madrugadões. Quando eu entrei no avião, quem já estava no voo dormia, e eu fui quieto para o meu lugar. Quando cheguei, tinha uma criança e eu falei: 'Oi, esse lugar é meu'. A mãe estava com uma outra criança, e estava na poltrona do meio. A criança, então, teve que voltar para o colo da mãe. E a menina sentada na minha poltrona me deu lugar.
Ali se criou um clima estranho, pois a mãe não tinha gostado do fato de eu ter pedido a poltrona. Ficou uma situação constrangedora, parecia que eu não era bem-vindo ali. Sabe, tu sentes pela maneira como me olharam. Mas, também, era de noite, um voo rápido. Sou professor, eu percebo situações que podem gerar algum mal entendido.
Para quebrar o gelo, eu toquei no ombro da menina, um gesto, e ela riu. Bem, achei que estava superado. Sentei e adormeci. E uns instantes depois, acordei com a mãe dela gritando. Mas gritando mesmo. Minha única reação foi 'olha, eu não estou entendo nada'. Isso foi bem na hora do serviço de bordo. Ela gritava: 'Ele tocou minha filha, ele tocou minha filha'. Aquilo era meio surreal para mim, eu não estava entendo nada. O comissário de bordo veio e fez algo padrão, levou a família para outro lugar. E eu voltei a dormir, porque eu não imaginei o que ela queria dizer com aquilo. Eu sabia que não tinha acontecido nada. Eu dormi, simplesmente dormi e não sei o que aconteceu.
Ela diz que a minha mão estava na perna da menina. É óbvio que não fiz isso. Você faz ideia de quantos jovens já foram meus alunos? Mais de 5 mil. Depois, ao longo do processo, eu recebi dezenas de cartas abonatórias de ex-alunos falando sobre a minha conduta. Eu realmente não sei o que pode ter levado ela a imaginar que toquei na filha."
A abordagem da polícia
"Depois que ela e os filhos foram para outro assento, eu voltei a dormir e achei que tudo era um mal-entendido e estava superado. Isso era pelo meio do trajeto (São Paulo para Porto Alegre). Quando o avião pousou, para minha surpresa, dois agentes (da Polícia Federal) entraram e disseram: 'O senhor vai ser conduzido porque houve um problema. Vamos lhe acompanhar para que o senhor pegue a sua bagagem'. Olha, eu sou um cara pacífico, entendeu. Eu disse 'tá bom' e saí com um deles. O outro foi para o lado da família.
No caminho de saída, eu conversava com o agente normalmente. Ele me disse: 'É, parece que a mãe se exaltou, é preciso esclarecer'. E eu querendo conversar com a família. Ele até me deixou claro que podia ter essa conversa para esclarecimento. Só que o outro agente desconfiou muito de mim pela minha calma. Ele até falou isso na audiência.
Eu fiquei umas duas horas numa sala do aeroporto esperando o que seria feito. O agente me deixou sozinho na sala. Depois de algumas horas, ele veio e disse que iria me conduzir até a sede da Polícia Federal. Fomos só eu e ele, de carro, sem algemas nem nada. Lá, eu fiquei mais umas quatro horas sentado num sofá esperando. Só ao meio-dia, sete horas depois de tudo, fui ouvido pela delegada. Quando ela chegou, eu fui cercado por uns seis agentes e perguntei o que estava acontecendo. Ela me olhou e disse: 'Então quer dizer que você não se lembra de nada, né?' Eu olhei para ela e pensei: 'tô fodido!'
Porque até aquele momento eu achei que era só uma questão de esclarecimento, de explicar o mal-entendido. Um dos agentes me disse que era melhor eu chamar um advogado porque a minha situação não era nada boa. E ela me deu voz de prisão. A partir dali, a minha cabeça virou e eu passei a entender o que realmente estava acontecendo. E sem nenhuma chance de me explicar."
A cela
"Só caiu a ficha mesmo quando o agente foi fazer a revista íntima. Ele me pediu para tirar o cadarço do All Star. E eu perguntei: 'por quê?' Ele me olhou como se eu fosse um marciano e disse que naquela carceragem teve gente que se enforcou. É nesse clima. Quando ele fecha a grade da cela e vira a chave, naquele momento, a minha vida virou. É um sentimento que sinto até hoje e não vou perder: ou eu caio ou fico em pé.
Eu fiquei (na carceragem da Polícia Federal) junto com um torturador uruguaio que havia sido preso na Região Metropolitana. Quando eu entrei lá, ele me ouviu e em cinco minutos disse que eu tinha que falar com o juiz imediatamente porque se eu fosse para o presídio eu não ia sobreviver. E aí ele começou a dizer o que eu tinha que fazer caso fosse mandado para um presídio, porque a gente sabe o que acontece lá com quem é acusado por estupro.
E nunca imaginei que eu ficaria incomunicável, sem poder me defender. Ali eu estava revoltado. Eu nem sabia porque eu estava ali. Foram três dias naquela cela da Polícia Federal."
A tornozeleira
"A prisão em flagrante foi substituída, três dias depois, por saída com tornozeleira eletrônica e prisão domiciliar. Nesse meio tempo, saiu um comunicado da Polícia Federal falando sobre a prisão por estupro vulnerável (ele foi indiciado pelo art 217 a do Código Penal, estupro de vulnerável). Isso foi para todos os veículos de imprensa do país. Os assessores (do local onde trabalhava) informaram às autoridades e no mesmo dia saiu, em edição extraordinária do Diário Oficial, a minha exoneração.
Eu estava arrasado, no fundo do poço. O meu mundo desmoronando e ainda isso. Foi simples cruzar as informações e ver quem eu era. Ali a vida começou a mudar na prática — para pior, claro. Perdi o emprego, fui proibido de dar aulas (a permissão para voltar a lecionar para adolescentes só foi dada recentemente), muitas pessoas se afastaram de mim.
Eu fui monitorado. Reviraram a minha vida atrás de pedofilia e, obviamente, não encontraram nada. Quatro meses com tornozeleira. Imagina, eu fiz uma pequena comemoração pelo meu aniversário de 50 anos, em casa, com aquilo na perna. Era simplesmente surreal. Sete meses depois, eu tive que sair de Porto Alegre. Não tinha mais como morar ali. Pessoas se afastaram, eu fui estigmatizado. Foi uma pena que eu cumpri e que a absolvição da Justiça não apaga."
O julgamento
"Eu evito falar sobre o assunto aqui onde eu moro. Você nunca vai saber a reação que as pessoas vão ter. Eu fui rotulado, estigmatizado, escreveram na minha testa o nome de crime com o qual eu não tinha menor relação. E isso ficou por três anos e dois meses até a decisão que mostrou que eu era inocente. Eu tive que mudar de cidade, tive que sair de Porto Alegre, troquei de Estado e fui morar com um familiar fora do Rio Grande do Sul.
Nesse tempo, algumas coisas conseguiram me manter em pé. Ex-alunos que escreveram cartas de próprio punho endossando a minha conduta, pessoas que se mantiveram próximas de mim. Eu sou muito grato à minha atual namorada, que quando soube o que tinha acontecido, ela confiou em mim. A minha ex-mulher, que mora em Porto Alegre, também foi gigante. Amigos que escrevem publicamente sobre isso para me defender.
Nesse tempo, sem emprego, o meu poder aquisitivo caiu demais. Eu fui obrigado a me tornar revisor de texto, eu vivo disso. E tento voltar a dar aulas. Legalmente, não tem nada que pesa contra mim. Mas eu não falo nada sobre isso para não trazer mais estigma para cima de mim. Agora, é inegável que tu carrega o fantasma e isso vai ser para a vida. Uma pena também é que as coisas acontecem a conta-gotas, da prisão à absolvição foi muito tempo. Era algo que poderia ter sido esclarecido na hora, mas não."
A vida depois da prisão
"Como é tudo muito recente, ainda não está suficientemente claro (a decisão pela absolvição foi dada no dia 8/2/2021). Por ora, é um misto de sentimentos: muito alívio e alegria por ter sido absolvido tanto pelo MPF (o Ministério Público Federal, nas fase de alegações finais, pediu que o réu fosse absolvido por ausência de provas) quanto pelo juiz federal. Muita revolta por terem tirado parte da minha vida, por ter precisado sair de Porto Alegre para recomeçar do zero e por ter que ficar numa espécie de limbo, esperando a sentença.
Logo eu que gostava e convivia com muitas crianças e adolescentes. Era impossível imaginar que eu viveria esse pesadelo. Lidei com muitos medos, senti bastante vergonha, tive raiva — por que comigo? — e sofri demais com o cancelamento e com os julgamentos levianos. Hoje tenho muito orgulho de ter sobrevivido a esses três anos e dois meses, quando pude perceber que minhas duas filhas, minha mãe e pessoas muito amigas sempre me ajudaram para que eu desse a volta por cima. No exato momento em que a cela foi fechada, eu me vendo inesperadamente preso, percebi que eu só tinha duas opções: cair ou ficar de pé. Sou grato com a vida porque permaneci de pé."