A vida é uma coleção de ironias. Carrego o nome do meu avô paterno, mas cresci na galáxia afetiva do materno. Animicamente, sinto-me portando o nome do outro avô.
Este avô começava o dia agarrado ao jornal. Devorava-o em um silêncio majestoso, era sua oração diária mais ardente. Quando lembro dele, a imagem que se impõe traz a luz dos primeiros brilhos do dia, a noite cansada indo embora. Ele sentado em sua poltrona-trono, com o jornal aberto, escancarado de notícias. Se tiver que ter um cheiro, seria de pão com manteiga e mel ao fundo.
Nunca aconteceu, mas penso que se alguém lhe perguntasse: ou ganhas o café da manhã ou o jornal, ele tivesse preferido o segundo. Era tal a voracidade, que eu imaginava que talvez ele estivesse em um concurso imaginário, que consistiria em ser o primeiro da cidade a terminar de ler o jornal. Invisíveis gnomos tipógrafos acompanhavam os jóqueis destacados de tal empreitada. Sabe-se lá qual o prêmio...
Sou um convicto do jornal pela sua presença formadora
Finda a reza, abria-se a vez dos comentários. Meu avô estava pronto para fornecer a sinopse das leituras. Contava como andava a novela da política, as últimas do futebol, os crimes de arrepiar o cabelo, as bizarrices do momento. Treinava e amealhava o estoque de assuntos para o café com os amigos, mais tarde, no Centro.
Quando chegava minha vez, ganhava o jornal sublinhado pela sua fala. Buscava as matérias que lhe fizeram questão e desenvolvia o meu jeito de orientar-me no labirinto das enormes páginas em preto e branco. A tinta escurecia os dedos. No meu caso, o contágio foi mais fundo. Tenho a pele fina, a química das rotativas chegou ao sangue. Nunca mais larguei o vício.
Eu sou um convicto do jornal pela sua presença formadora. Ele é a continuação da escola para quem saiu da escola. A escola para quem teve pouco tempo com os professores. O treino cerebral diário com o texto. Um momento de exercício cognitivo básico. Assim era para meu avô. Assim deve ser para muitos.
Agora a situação mudou de lado, eu escrevo no jornal. Tenho uma satisfação em entrar na casa das pessoas. Fazendo-as rir, chorar, pensar, lembrar. Alguns gostam, outros xingam, só temo a indiferença. Tenho carinho pela missão semanal e pelos destinatários. Faço com esmero, mas temo enganar meus leitores em um detalhe.
Então, mais vale a verdade. Eu penso em vocês, faço pautas que lhes possam interessar, mas escrevo mesmo para meu avô. Tenho esperança que, de tanto ele ler, eu do meu lado, de tanto escrever, possa ocorrer um lapso temporal/espacial que envie minhas linhas aos jornais de quando meu avô era vivo.
Penso que até já aconteceu. Um dia, há uns 50 anos, ele quebrou a solenidade, olhou para mim demoradamente, algo incrédulo, sorriu e voltou a mergulhar na sua missa cívica particular.