A mãe acordou para ir ao banheiro e espiou o quarto da filha. Ela não estava. Procurou no quarto do irmão, no banheiro. Acendeu as luzes da casa. Gritou. O marido desperta já dentro do filme de terror. Onde ela está? Imaginaram os piores cenários.
Em um impulso, o pai atravessou o pátio rumo à garagem. Encontrou a filha enrolada em seu cobertor, usando de travesseiro o ventre de seu cachorro.
O susto virou piada na família. Só a menina não ria. O episódio sintetiza sua infância e explica sua autodenominação de Mogli. Esse apelido, que a envergonha e define, só eu conheço.
Ela nasceu em uma família amorosa e bem de vida. Mas o destino tem seus caprichos. Quando chegou, havia um irmão condenado a ser um bebê eterno. Sua doença monopolizava os pais e projetava uma sombra sobre a recém-chegada.
Entre os azares, surgiu um cão benfazejo. Trazido da fazenda para ir ao veterinário, nunca voltou
Até aí, tudo bem, mas os avós adoeceram. Isso é da vida, mas precisava ser todos ao mesmo tempo? Cada um com seus problemas, suas correrias, suas necessidades. A mãe largou o emprego para se dedicar à família. O pai trabalhava duro para não perder o que tinham. Tantos fronts berravam, que a menina saudável sobrava.
Mogli confunde as lembranças dos seus aniversários cancelados. Não recorda em qual alguém estava internado muito mal ou qual coincidiu com tal velório. Em poucos anos, cinco lentas mortes. Apesar de todos os esforços, o irmão abriu a porteira por onde passaram os avós.
Entre os azares, surgiu um cão benfazejo. Trazido da fazenda para ir ao veterinário, nunca voltou. Tornou-se o companheiro de todas as horas, seu confidente, seu refúgio. Um cachorro enorme, sinistramente feioso. Por fora um cão que ninguém afagaria, por dentro pura doçura.
Quando os pais emergiram dos lutos, Mogli já habitava outra ilha. Agora que tinham tempo, não conheciam os caminhos que levavam a ela. Convidada a não se rematricular em vários colégios, tampouco tinha amigas. Apenas de seu anjo da guarda canino conheceu a constância da presença.
Nunca soube definir no que consistia meu trabalho com ela: algo como explicar o funcionamento humano a um visitante ET. Xucra, sobrava-lhe agressividade e faltava traquejo em compreender os outros. Um dia, ela me disse que devia a vida a um cachorro e chorou por 45 minutos. Tentei ser seu Balu, seu Baguera, levando-a de volta aos humanos, dos quais se perdia a cada encontro. Afinal, o que lhe garantia que eles também não sumiriam?
Quando julgou-se forte, quis largar o tratamento. Concordava em parte, mas disse-lhe que minha meta era que voltasse a rir. Ela retrucou que isso não lhe fazia falta e se foi.
Esses dias, mandou uma foto. Sorria abraçada a uma namorada. Cachorros não mais. Pela imagem, está em uma fase felina.