E a fulana? Por que não veio? Perguntou minha mãe. Sua agora ex-patroa, cheia de orgulho, como quem esperasse a deixa, responde: "Ela saiu da vida, vai casar, arranjou um homem. Se foi para Soledade".
O diálogo é da década de 70, em Carazinho. Para mim, era dia de alvoroço, o mais esperado do mês. O dia em que as mulheres da zona do meretrício – assim era chamado – vinham ao laboratório da minha mãe para fazer exames de controle de doenças sexualmente transmissíveis. Recém chegado à adolescência, estava naquela de que se Maomé não vai à montanha, por imensa sorte, o prostíbulo vinha na minha direção.
Não estava ali espiando, e sim trabalhando. Mal comparando, um laboratório é como uma cozinha sofisticada, minha tarefa era lavar os pratos. Na verdade é mais complicado, tudo deve ser limpíssimo e esterilizado. Substituindo funcionários, minha mãe notou que eu era quem menos quebrava a vidraria, e efetivou-me no posto de capitão de pia e autoclave.
A cafetina da cena acima mostrava falta de profissionalismo. Como assim ficar contente por perder plantel? Bem, o Brasil é amador mesmo. Pelo sorriso das outras, com o prazer que minha mãe teve ao ouvir a notícia, se elas tinham inveja da desertora, esse era menor do que a felicidade de ao menos uma ter conseguido o que era o anseio de todas. Mas essa era só uma das coisas enviesadas da solidariedade feminina daqueles dias.
Como o caso prescreveu, posso delatar minha mãe: ela não reportava o resultado. Se uma das moças estivesse doente, chamava ela e a patroa, alertava do fato. Elas saíam com o endereço de um médico e de uma farmácia onde poderiam ser atendidas por uma mulher para comprar os remédios. Elas levavam cartão vermelho, eram advertidas de que deveriam ficar de molho, mas não havia a comunicação à federação. Era na confiança na palavra.
Por que minha mãe fazia isso? Arrisco uma hipótese: sororidade, quando a palavra ainda não era usada
Por que minha mãe fazia isso? Arrisco uma hipótese: sororidade, quando a palavra ainda não era usada. Empatia com o destino que lhe parecia triste de outras mulheres, e não querer vê-las na mão da burocracia e de homens que poderiam humilhá-las ainda mais. Fazia parte de uma informal rede feminina que apoiava as mulheres de menos sorte.
Em defesa da minha mãe, lembro que eram tempos pré-aids – todas as doenças sexuais detectáveis eram curáveis – e que ela ficaria sabendo pelos colegas se o pacto verbal fora cumprido. Elas teriam que retornar algum dia para mais exames.
Grosseiramente, havia duas posições na época sobre as profissionais do sexo: que eram umas vagabundas que optaram pelo caminho mais fácil, ou, como a da minha mãe, que eram mulheres que por azar foram parar no front. Ou seja, antes de julgar era preciso ajudá-las. As mulheres sempre foram boas nas táticas de guerrilha, vale a frase: lute como uma mulher!