Na peça de ficção em que se converteu o orçamento federal de 2021, a queda de braço sobre o estouro fiscal das emendas parlamentares esconde uma distorção peculiar da democracia brasileira.
À primeira vista, a emenda carimbada por um deputado para construir em sua base um ginásio de esportes, por exemplo, é uma iniciativa salutar. Mas é preciso olhar mais fundo. Como qualquer verba pública, a obra deveria seguir critérios técnicos e republicanos de orçamentação, prioridade e execução. No mundo ideal, a obra seria avaliada, orçada e executada pelos governos municipal, estadual ou federal, ou em uma combinação dos três – sem apadrinhamentos ou submissão a interesses partidários e paroquiais.
Conceder funções executivas a parlamentares é parte do imbróglio em que o Brasil se meteu ao perder de vista a separação entre poderes. Nesta lambança, o STF legisla regularmente e até assume poder de polícia, o Parlamento absorve funções de governo e o Executivo Federal invade o campo do Legislativo com Medidas Provisórias. No fim, os três poderes se acotovelam na disputa de espaço e na sobreposição de atribuições, enquanto os governantes locais e regionais que deveriam planejar e executar os orçamentos se veem compelidos a percorrer gabinetes em Brasília para passar o chapéu em busca de verbas. É uma aberração que mantem vivo e aceso o ciclo perverso do clientelismo político, na mesma toada da concessão de favores que vem desde o Brasil Colônia – apenas se deu a ela nova roupagem e aparência de normalidade.
Parlamentares, em tese, são eleitos para legislar, ou seja para exercer a nobre missão de debater grandes temas, propor, aprovar ou rejeitar novas leis e o orçamento, além de fiscalizar seu cumprimento. Quando uma verba pública é aplicada diretamente por um deputado, ocorre uma dupla distorção. Além de apequenar o mandato, o privilégio torna desigual a disputa eleitoral contra possíveis futuros concorrentes que não têm o poder de escolher obras na sua base. Em suma, criam-se currais eleitorais e fecham-se portas para a renovação política.
Com a dieta de obras públicas, fruto de um Estado que prioriza a própria subsistência, é muito improvável que um deputado ou senador resista à tentação de afagar o eleitorado com projetos que deveriam ser propostos e tocados pelos executivos. Da mesma forma, é demasiado esperar que o eleitor médio perceba que a relatoria de um projeto relevante pode ter mais impacto em sua vida do que a construção de um ginásio. Como não há força à vista para romper esse ciclo viciante, cabe pelo menos um reconhecimento à bancada federal gaúcha, que procura concentrar suas emendas em projetos comuns para o Estado, despersonalizando em grande medida uma deturpação que embaralha poderes, conspurca o Parlamento e enfraquece governos.