Se na semana passada escrevi sobre nossa inata e em geral oculta – ou disfarçada – ferocidade de animais predadores, hoje lembro que somos, também, como tanta coisa neste mundo estranho, gentis, bons, brilhantes ou simplesmente amorosos.
Revi num relance as mais belas obras de arte que me emocionam e inspiram: telas, músicas, dança, textos. Lembrei de alguns dos grandes museus do mundo que visitei. Lembrei do quanto me debrucei sobre detalhes infinitamente valiosos, nuances de cor, quanto tentei perceber a mesma coisa em músicas que posso chamar sublimes (economizo muito essa palavra). Lembrei dos muitíssimos gestos de afeto, generosidade, idealismo, coragem e heroísmo que presenciei ou de que fiquei sabendo a história na nossa realidade comum.
Sim, somos também muito bons, capazes de coisas eventualmente escondidas. Aqueles que cuidam do filhinho doente ou deficiente para o resto da vida; os que atendem com bondade e amor os velhos pais precisados; os que estendem a mão para um amigo, abrem os braços para um mero conhecido, choram junto, tentam confortar ou apenas estão ali presentes, em silêncio, na hora mais negra.
Já participei de demasiados velórios de pessoas amadas e embora em geral nem prestasse atenção a nada, curvada sobre minha dor e a de pessoas chegadas, ali naquele lugar doloroso demais para se comentar, de algum jeito sutil aquelas presenças amorosas, aqueles olhares de cumplicidade no sofrimento, até aqueles silêncios – porque as coisas mais graves não se pronunciam – me fizeram bem. Ainda que remotamente. Ainda que só percebidos horas ou dias depois.
Há quem ajude crianças ou adultos abandonados; há quem acolha animais maltratados; há quem visite doentes desconhecidos em hospitais; há quem acorde de madrugada atendendo ao chamado de um paciente ou do hospital onde se precisa de médico. Há quem no silêncio do seu ateliê crie obras de arte lindas, fortes ou sutis, quem componha músicas no isolamento do estúdio ou até do quarto, quem ensaie delicados ou audaciosos passos de dança, quem trabalhe em redações de jornal ou televisão altas horas para transmitir notícias importantes da melhor maneira; há quem trabalhe sob um sol quase fatal arrumando estradas e limpando ruas; quem prepare comida numa cozinha mal ventilada e com temperatura de 40 graus; quem alimente um bebê que nem é seu e o trate com cuidado e carinho; há quem se esfalfe tentando abrir cabeças adultas ou infantis em universidades e escolas... quem no seu consultório escute dia a dia a agonia de pacientes graves... há tanta coisa boa, grande, emocionante que nós, pobres humanos, fazemos, que não posso deixar de homenagear aqui todos aqueles que alguma vez, ou cotidianamente, são bons, gentis, generosos, amorosos.
Sem eles, a vida não seria possível.