Foi um combo completo. O manifesto antirracista com a bola, nessa linguagem universal que é a bola; Madri e sua maneira organizada de levar a vida que te faz se sentir em casa; o Santiago Bernabéu, estádio de aço que emerge moderno e arrojado numa região central e um jogaço com seis gols; e alguns guris que anteciparam o relógio do futebol e nos mostram hoje o que servirão amanhã. O Espanha 3 x 3 Brasil foi tão bom que nem pareceu amistoso.
A ideia do jogo era levantar a bandeira do racismo e alinhar duas seleções campeãs mundiais e seis títulos de Copa à luta que Vinícius Júnior trava sozinho aqui na Espanha. Tudo foi conduzido para que ele fosse o centro da noite. Vini entrou como capitão, a Seleção usou um agasalho preto criado especialmente para essa partida. Os olhos estavam nele. O que até gerou críticas de movimentos ligados à luta antirracista, que reclamaram do ar comercial que o jogo recebeu. Vini está, nitidamente, sob alta pressão, desgastado mentalmente. Essa luta que ele trava, para o bem de todos nós, é dura, suga as energias, exige concentração e controles máximos. É um fardo pesado demais para um garoto de 23 anos. Ele é uma usina de coragem, mas até quem tem essa fortaleza toda, uma hora, sente o golpe. Para você ver o quanto é cruel e corrosivo o racismo.
Tudo isso impacta o jogo de Vini. Ele está menos insinuante do que o normal. O atacante da Seleção Brasileira sempre foi menos do que o do Real Madrid. Mas. Mesmo no time espanhol, ele tem sido em muitas jornadas mais o atacante do Brasil. Nos cerca de 65 minutos em que esteve em campo, tentou suas jogadas, mas sem efetividade. Saiu de campo sob aplausos das 60 mil pessoas. Até porque quem havia ido não estava preocupado se Vini iria driblar ou dar show. O motivo, no caso dele, era outro.
Dos demais, no entanto, se esperava o melhor do futebol. E eles entregaram. Rodri esfacela a imagem amarelada que alguns ainda conservam sobre a posição de volante. Ele marca, protege a zaga e joga. E como joga. Arma desde trás e aparece na frente para marcar. Lamine Yamal e Nico Williams, os espanhóis filhos de imigrantes africanos, são europeus com DNA de bola daquele futebol mais genuíno de rua. Driblam com magia e executam tarefas com disciplina. Dani Olmo e Fabián Ruiz são meias modernos.
Toda essa combinação de jogadores fez a Espanha expor o Brasil ao constrangimento no primeiro tempo. Levamos um banho de bola. Em determinado momento, na tribuna, eu olhei para o Júlio Gomes, da Bandsports, que estava ao meu lado, e busquei um socorro.
— Vamos levar uma goleada!
— Está com jeito — respondeu ele, sem me ajudar muito.
Saímos para o intervalo com um 2 a 1 muito mentiroso. Mas melhoramos no segundo. Dorival colocou caras novas, como Andreas Pereira, Yan Couto, André e Endrick. Aí saiu jogo. Articulamos, chegamos ao ataque, criamos.
Endrick, no segundo toque, fez gol. Se a vida seguir seu curso, estamos vendo surgir mais um da linhagem de Ronaldo, Ronaldinho, Neymar. Ele é diferente. Um guri de 17 anos que faz um gol em Wembley no sábado (23), e outro no Bernabéu na terça-feira (26), é de outra turma. É tão distinto que seu gol foi comemorado pelas duas torcidas no estádio. Os espanhóis se levantaram, aplaudiram e se olhavam, sorrindo. Nas tribunas, repórteres locais se alvoroçaram. O Fernando Kallás, brasileiro da Reuters e radicado em Madri, desceu até um conhecido dele de uma rádio espanhola com o dedo apontado para ele:
— Eu te disse, eu te disse!
Tudo isso aconteceu no mais impactante estádio de futebol do mundo neste momento. O Bernabéu é uma obra-prima com tribunas, vestiários e tecnologia de ponta para o futebol. Como não havia mais para onde aumentar no elegante bairro Chamartín, ele cresceu para cima. A tribuna de imprensa fica no último anel. Pelo elevador, chega-se ao oitavo andar. A noite madrilenha açoitava com frio de 4ºC. O teto retrátil fechado e a calefação ajudaram a elevar um pouco a temperatura. Quando chegamos, uma funcionária disse que bateria em 13ºC, com a calefação. Desconfio que não chegou a tanto, pelo gelo que estavam meus pés.
Quem foi ao jogo, porém, tenho certeza de que não reclamou disso. O teto fechado evitou a chuva que baixava ainda mais a sensação térmica. O conforto do estádio fez com que a experiência fosse completada por um jogaço de alto nível. Todos foram para casa felizes com o 3 a 3, prêmio extra da noite. Até porque futebol era o que menos importava numa noite em que Vini Jr. fez o mundo ouvir: basta de racismo.