Nem só de Barça e, vamos lá, o Espanyol, vive o futebol na Barcelona. No último domingo, fui conferir, digamos assim, o lado B do futebol local. Eu fui assistir a um jogo do CE Europa, pela quarta divisão espanhola, a Segunda B RFEF. Jogo raiz, futebol sem requinte. Foi como se tivesse entrado em um túnel do tempo.
Goleiro dando chutão, zagueiro rebatedor com tamanho de armário seis portas, jogo físico, de poucos toques na bola e muita energia despendida. Porém, também foi como dar mergulho no modo de vida catalão. Se o Barcelona virou um clube mundial e que arrasta milhares de turistas ao seu estádio, o CE Europa conserva a vida de bairro, o encontro da vizinhança, o domingo da família.
É muito provável que você nunca tenha ouvido falar do Club Sportiú Europa, assim como eu desconhecia completamente. Só fui conhecer porque o Francisco Mahfuz, um porto-alegrense há 14 anos em Barcelona, me chamou por um direct no Instagram com o convite. O Francisco é vizinho do estádio. Atravessa a rua e está na porta do CE Europa. Do apartamento em que mora, enxerga quase todo o campo.
O CE Europa é o clube do bairro de Gràcia. Um pouco da vida naquela região passa ali. Há escolinhas, de futebol e basquete, academia. Quase toda a vizinhança se encontra ali uma hora ou outra. É um clube de bairro, mas com história. Foi fundado em 1907, oriundo da fusão de dois times, o Provençal e o Madrid.
Ganhou esse batismo por conveniência. Saía mais barato pagar as dívidas do recém-falido Europa e herdar seu nome do que registrar um novo. Os maiores orgulhos dos torcedores estão guardados há cerca de um século. Na temporada 1922/1923, venceu o Barcelona por 1 a 0 e conquistou o Campeonato da Catalunha. Com isso, habilitou-se à Copa do Rey, à época a competição nacional. Chegou à final, mas perdeu por 1 a 0 para o Athletic Bilbao, em casa.
Pioneiro
O outro orgulho do clube é ter sido um dos nove fundadores da primeira divisão espanhola, no final dos anos 1920. O que vemos como a milionária La Liga hoje teve o dedo do CE Europa há 100 anos. Fora isso, tem três Copas Catalunha, a última de 2015, quando venceu o ganhou do Girona na final. O Girona, por sinal, hoje líder da La Liga. Para os torcedores, porém, parece que ganhar faz pouca diferença. O intuito ali é celebrar o orgulho, o pertencimento, as amizades, o bairro.
O CE Europa, como todos da Segunda B RFEF, é semiprofissional. Os treinos costumam ser à noite porque os atletas, durante o dia, buscam complemento na renda. São 90 clubes, divididos de forma regional, em cinco grupos. São cinco campeonatos de pontos corridos.
Só o campeão de cada grupo sobe. O CE Europa está em quarto, três pontos atrás do Hércules, um clube que até o começo dos anos 2000 vivia entre os grandes. Na chave ainda estão o Espanyol B e o Valencia Mestalla, a filial do Valencia. E está o Sant Andreu, o grande rival e morador do bairro homônimo. Quando eles se encontram, o domingo ganha outra feição.
Embora seja semiprofissional, o CE Europa conta com boa estrutura. O estádio é conservado e está bem localizado em Gràcia. Desce-se da estação Alfonso X, atravessa-se a rua e pronto, dá de cara com a bilheteria. Sim, pois o ingresso ainda é de papel, tipo aqueles de rifa. Compra na hora. Com 15 euros, tem lugar garantido no pavilhão.
O gramado é sintético, como os encontrados nas quadras de futebol society. O Pedro Ernesto daria urros se viesse esse campo verdinho e sem buracos. É a saída para suportar treinos em três turnos dos times de base e adultos. Mas a bola quica mais do que deveria. E o jogo piora.
Torcida
Os torcedores parecem acostumados. Vibram com um simples chute de média distância e soltam "uuuhhhhs" quando a força vai além da conta e alguém tomba. Quase todos estão ali para conversar, tomar um vermuth com duas azeitonas dentro e petiscar uns calamares.
O restaurante lota, as mesas com vista para o campo são disputadas. Só não vai ali a torcida atrás do gol, os Eskapulats (escapulário, referência à camisa, que tem um V no peito). Eram cerca de 80, passaram o tempo todo alentando.
Os jogadores reconheceram o apoio. Foram pular e cantar perto deles ao final, alegres com o 2 a 0 sobre o Terrassa. O placar eletrônico ao fundo informou o público, 1.735 pessoas. Na quarta, haviam sido 4 mil, contra o Elche, pela Copa do Rey.
Sem contar os moradores nas sacadas dos prédios do entorno assistindo com vista privilegiada. Terminado o jogo com o Terrassa, todos saíram entre abraços e conversas rápidas com aquele vizinho que a correria da semana impediu de encontrar.
Havia o almoço pela frente e o resto do domingo. Que, em Gràcia, já estava ganho.