Marcelo Bielsa é conhecido no futebol como “El Loco”. Isso porque os gênios são incompreendidos em seu tempo. No caso de Bielsa, não por todos, é verdade. Ele é o técnico dos técnicos. Pep Guardiola, por exemplo. Em 2006, viajou 8 mil quilômetros para encontrá-lo em seu rancho, na área rural de Rosario. O argentino o esperou com um churrasco.
A conversa sobre futebol, vida e até cinema durou 11 horas. Desde lá, Guardiola sempre recorre ao seu mestre e nunca se cansa de elogiá-lo. Na próxima temporada, os dois se reencontrarão no campo. Bielsa tirou o Leeds United da Segunda Divisão e acabou com 16 anos de agonia da sua torcida pela volta à bilionária Premier League.
Esse luxo todo, na verdade, nem combina com Bielsa. Essa é outra faceta peculiar dele. Trata-se de um sujeito simples. Quando chegou ao Leeds, na metade de 2018, o clube instalou-o em um hotel cinco estrelas. Ele achou uma demasia. Semanas depois, mudou-se para um quarto e sala próximo ao CT.
Caminhadas
Para os tabloides ingleses, foi uma fartura. Acostumados a vigiar a vida das celebridades, os fotógrafos topavam com Bielsa no supermercado, empurrando o carrinho de compras, ou tomando café na confeitaria no térreo do seu prédio. Também era visto a passos até o CT. Questionado do porquê de preferir ir a pé, em contraste com os carrões dos técnicos do mesmo quilate, usou de razão prosaica: era perto, e o aspecto rural da região o remetia à sua origem.
Logo os paparazzi deixaram Bielsa de lado. Logo, também, a torcida do Leeds se conectou com aquele técnico de renome, mas de hábitos simples como eles. Leeds é uma cidade de 800 mil habitantes no condado de West Yorkshire, no norte da Inglaterra. Foi um dos berços da revolução industrial, e isso moldou sua população.
Embora a cidade ainda tenha o espírito empreendedor e seja o segundo centro jurídico e financeiro do país, é na base trabalhadora que se alicerça. Foi ali que brotou o Leeds, time que até os anos 1970 e 1980 era conhecido como “Dirty Leeds” pelos métodos, digamos assim, pouco nobres em seu jogo.
Para ter uma ideia do quanto o Leeds ignorava a lisura em campo, muito da sua força nas décadas de 1960 e 1970 era porque jogadores de outros times insistiam em se transferir para lá. Assim, escapavam de enfrentá-lo. A falta de fair play foi tamanha que, quando o time despencou em 2004/2005 e chegou até a League One, a terceira divisão, rivais vibraram: o destino havia mandado a conta.
Por tudo isso, você pode imaginar o quanto mexeu nas entranhas do clube a atitude de Bielsa na temporada passada, de ordenar aos jogadores que deixassem o Aston Villa empatar um jogo. Um minuto antes, seu time marcara 1 a 0 enquanto um jogador adversário estava caído. A vitória colocaria o Leeds de forma direta na Premier League. Com o resultado, precisou encarar o mata-mata – onde caiu para o Derby County.
Meses antes, Bielsa havia sido o centro de polêmica com o próprio Derby, que descobriu espiões do Leeds em seus treinos. Com humildade e ajuda do inseparável tradutor, o argentino se desculpou por adotar a prática, comum na América do Sul.
Fato é que a eliminação custou a chance de levar R$ 1 bilhão ao Leeds. Um golpe duro para um clube que, nos últimos 15 anos, havia passado por administração judicial, quatro donos e a venda do Estádio Elland Road, recomprado em 2017 pelo novo dono, o italiano Andrea Radrizzani.
Aliás, foi ele quem resolveu manter Bielsa e a base do time para esta temporada. A recompensa veio com o título e uma campanha incontestável, embalada por um modelo de jogo em que todos marcam e defendem e no qual os jogadores rendem o que nem sabiam ser capazes. Coisa de Loco, como são esses gênios à frente do nosso tempo.