No início da noite de terça-feira (19), Serginho atendeu ao telefone em Cochabamba para tratar de um dos temas mais desprezíveis das relações humanas, o racismo. No domingo (17), o meia de 35 anos abandonou o jogo em que seu Jorge Wilstermann perdia por 2 a 0 para o Blooming, em Santa Cruz de la Sierra. O motivo? Estava cansado de ouvir os sons de macaco repetidos pela torcida local. Confira a conversa que Cléber Grabauska e eu tivemos com o meia.
Aqueles insultos no final do jogo foram a gota d'água de atos que vinham se repetindo durante toda a partida?
Essa situação vem se repetindo já faz quase um ano. Muitas pessoas fazem vista grossa. No ano passado, nesse mesmo estádio, passei pela mesma situação. O próprio técnico do Blooming na ocasião me insultou com ofensas racistas. Achei que algo aconteceria com ele, mas foi o contrário, se voltaram contra mim. Ele disse que havia sido ofendido por mim. Isso aconteceu talvez por eu ser estrangeiro. Eles (bolivianos) têm essa postura, se defendem até a última circunstância. Depois desse jogo em que os eliminamos, no campeonato seguinte, toda a vez que ia a Santa Cruz de la Sierra, aconteciam ofensas racistas. Houve um jogo contra o outro time da cidade em que um jogador adversário me insultou. Todos viram, Inclusive os companheiros dele.
Em outras regiões isso também ocorria?
Virou corriqueiro. Em todos os jogos. Não digo que por parte dos atletas, mas do público. Na semana passada, em Oruro, fui substituído e saí ouvindo som de macacos feito pela torcida. Nesse jogo contra o Blooming, houve insultos já no aquecimento. Meus companheiros vieram me confortar: "Serginho, não esquenta, vamos nos concentrar no jogo". Eu me concentrei até onde deu. Isso foi o jogo inteiro. Havia alertado o árbitro no intervalo, mas ele não fez nada. Dirigentes do Blooming me xingaram na volta para o segundo tempo. Não entendi a razão para tanto ódio. Não posso generalizar, mas tenho certeza de que 90% do estádio estava me insultando.
Relata o seu sentimento naquele momento em que decidiu deixar o campo?
Fiz uma jogada, e a bola foi para escanteio. Quando fui cobrar, vieram os sons de macaco. Chega um momento em que você não aguenta mais, se sente impotente. Não xinguei ninguém, simplesmente tomei a decisão de sair de campo. Você pode protestar contra o adversário, mas não pode discriminar por cor da pele, por religião. O cara pode ser branco, preto, amarelo, roxo. Não importa a cor. Preconceito não não combina com o esporte, algo é deprimente. Até agora, evito assistir às imagens na TV. Mas, agora, mesmo está passando aqui. Mostra uma pessoa imitando macaco. Vi de relance no estádio, mas vendo claramente, machuca. Espero que tudo comece a mudar agora.
Existe preconceito fora do futebol na Bolívia?
A Bolívia é um país muito bom de se viver. Estou há um ano e meio, não tenho o que de falar de Cochabamba. Fui muito bem recebido, com carinho. Mas na rua já sofri preconceito, não serei hipócrita de negar. Há 10 dias, estava saindo do banco, um cara passou de carro e começou a me chamar de macaco. Mas talvez isso acontece por eu ser conhecido, estar toda hora na mídia. Há o preconceito no Brasil, mas é velado, não acontece de ser insultado na rua como aqui. Mas não julgo o povo todo, há racismo em todo o mundo. O boliviano é maravilhoso.
A Federação Boliviana já se pronunciou?
O que sei é que meu clube tem dado o total respaldo, total apoio e vai entrar com uma sanção na Fifa. Até o presidente da república, Evo Morales, fez menção ao ato que ocorreu no jogo. O que mostra que depois de domingo o tema ficou mais sério.
Espera que sua atitude iniba o racismo nos estádios bolivianos?
É difícil falar. No ano passado, a Federação dos Atletas fez campanha contra o racismo. Fomos jogar em Oruro, entramos com faixas em campo e tudo. Com 20 minutos de jogo, os insultos racistas se iniciaram. É preciso ter leis para frear isso. Quando se aplica a lei, o povo entende. Tenho apreço grande pelo país. Foi ventilado que iria embora, mas não. Seguirei até o fim do meu contrato.
Como sua família reagiu a tudo isso?
Tenho uma família bem estabelecida, sou casado há 20 anos. Tenho um casal de filhos, uma menina de 11 e um menino de 10. Minha filha assistia ao jogo. Ouviu quando o comentarista falou na hora em que eu saía de campo que quando me propus jogar futebol deveria entender que isso se passaria na minha vida. Quando me encontrou, ela me disse: "Pai, está errado. Não é porque você joga futebol que precisa passar por isso". Uma menina de 11 anos tem essa compreensão e um cara de 60, não. Minha mulher me contou que meu filho chorou. Ele gosta de futebol, treina, sonha em ser jogador também. Mas só chorava e dizia para ela: "Mamãe, será que vai passar comigo o mesmo que se passou com o meu pai? Se for assim, não quero". Você fica abatido, mas sabe que Deus nos colocou aqui na Bolívia com algum propósito. Vamos em frente.