Um homem gay se declarou para seu amado, em pleno Palácio Piratini. O salão estava lotado de gente. Ele olhou para os pais, a quem agradeceu pelo apoio na vida pública, e então virou a cabeça para um pouquinho mais adiante. Ali estava sentado o destinatário, a quem chamou de amor. Um médico do Espírito Santo.
Tímido, o jovem sorriu com o olhar, na tentativa de retribuir a declaração pública de afeto, vinda do protagonista da cerimônia. E em seguida abraçou a mãe do namorado, esta sim com um sorriso largo de quem sabia que o filho havia acabado de fazer história.
A cena aconteceu na cerimônia de posse do primeiro governador reeleito no Rio Grande do Sul. Eduardo Leite, 37 anos, aliás, é um colecionador de ineditismos. Além desse feito, foi também o primeiro governador a declarar publicamente sua homossexualidade, algo que havia relutado em fazer em anos de vida pública. Foi no programa Conversa com Bial, em julho de 2021, que ele falou abertamente sobre o assunto pela primeira vez.
Na cerimônia deste domingo (1º), como muitos puderam ver, Leite falou sobre o namorado como alguém que admira pelo cuidado com as pessoas, em especial com as crianças. “O Rio Grande do Sul não tem uma primeira-dama. Mas tem alguém que é de verdade”. Os convidados se levantaram para aplaudir de pé.
A resposta de Thalis Bolzan veio com um depoimento publicado junto com uma foto dos dois: "Hoje foi um dia que vai ficar guardado pra sempre na minha memória. Estar caminhando ao seu lado, faz de mim um ser humano melhor a cada dia. Obrigado por ser de verdade. Obrigado por tanta coragem. Obrigado por tanto amor. Amo muito você ❤️"
Mas, talvez alguns de nós ainda estejamos nos perguntando, diante do destaque ao ocorrido, o que é que, afinal, eu tenho a ver com isso? Por que o destaque ao relacionamento governador?
Aí estão dois pontos cruciais sobre o episódio. Primeiro, não há como negar o ineditismo do fato. Nunca antes na história deste (ou de nenhum) Estado, um homem gay declarou seu amor a outro homem, ainda mais em seu momento de posse como governador. Sublinhe-se: no Rio Grande do Sul, um Estado conhecido pelo comportamento conservador de boa parte de sua população.
Em segundo lugar, porque trata-se de algo que transcende a esfera individual. Em sua obra "Lugar de Fala", a filósofa Djamila Ribeiro - citando a professora Patricia Hill Collins, teórica respeitadíssima - explica o conceito que dá título ao livro teorizando sobre os pontos de partida de cada grupo social. Ela destaca como uma das premissas as diferentes condições sociais que "permitem ou não que esses grupos acessem lugares de cidadania".
Na prática, o que Djamila tenta nos explicar é que o grupo social ao qual você pertence (ser uma pessoa negra, gay ou com deficiência, por exemplo) poderá fazer com que você experimente uma restrição de oportunidades, que surgiriam "naturalmente" caso você não estivesse em uma dessas categorias. Neste contexto, é extremamente importante quando alguém que faz parte desses grupos consegue falar e fazer ecoar sua voz (ainda mais em uma cerimônia assistida por milhares) porque reafirma a legitimidade dessa população em contar sua própria história.
Assim, a fala de Eduardo Leite merece ainda mais aplauso, porque demonstra a um grupo historicamente alvo de preconceito que há espaço de cidadania para todos. Um desses espaços é a cadeira de governador de um Estado importante como o Rio Grande do Sul.
Por fim, reconhecer a atitude não se trata de um tratado de aprovação absoluta sobre o futuro governo ou mesmo do indivíduo. É absolutamente legítimo concordar ou não concordar com as ideias do tucano. Aprovar ou não aprovar seus ideais políticos. Ser apoiador ou ser oposição. O que é preciso, acima das divergências, é reconhecer a importância do gesto. E que ele possa servir de modelo a toda terra.