“A vida vai oferecendo bandejas. Têm os frutos amargos, os muito doces, os azedos, e você vai escolhendo”, reflete Gilberto Gil, naquele jeitão tranquilo, em uma conversa com a filha Preta, para então concluir sorrindo:
— Eu fui tentando juntar dentro de mim as intencionalidades bondosas. Virei adepto da bondade radical.
A frase pegou — e me cativou também.
Sou fã de Gil e de toda a geração de ouro da MPB que, aos poucos, vai se retirando dos palcos, deixando um legado imenso e inquestionável.
Caetano já disse que, em breve, quem quiser vê-lo terá de procurá-lo na Bahia. De lá, ele não pretende sair por nada. Gil está fazendo o mesmo. Às voltas com uma temporada musical internacional na Europa e na Ásia, ele acaba de confirmar a decisão de se aposentar das grandes turnês. E está em paz.
— Não sou mais um artista da vez — disse ele, sereno e grande, em entrevista recente ao Estadão.
Sair de cena não é fácil para ninguém (Joe Biden que o diga). Imagine o que isso significa para um grande artista, que trilhou a vida sob os holofotes, movido a aplausos.
Gil fará falta, ele e sua “bondade radical”, que deveria servir de exemplo em tempos tão pouco amigáveis, para dizer o mínimo. Mas o que significa ser “radicalmente bom”? Existe isso? Do que é feita a natureza humana?
A discussão vem de longe, você sabe. Para um cara chamado Thomas Hobbes, que escreveu Leviatã, em 1651, os seres humanos não têm salvação, nem adianta insistir. Haveria, em todos nós, uma tendência natural à violência, daí a célebre frase “O homem é o lobo do homem” (naquele tempo as mulheres não contavam → Alerta: contém ironia).
Aí veio Jean-Jaques Rousseau, no século 18, e disse que não era nada daquilo. Hobbes estava por fora. “O homem”, concluiu o célebre filósofo suíço (esquecendo-se, outra vez, a parcela feminina da população), “nasce bom”. O problema é a sociedade. A culpa é toda dela. “A sociedade”, bradou Rousseau, dedo em riste, é que “corrompe o homem”.
Não se preocupe, querido(a) leitor(a), eu não vou tentar aqui resolver os dilemas da humanidade. Ninguém é “bom” ou “mau”, assim, preto no branco. E Gil sabe disso. Ele mesmo, que se autoproclamou “agente da fraternidade”, escreveu uma canção chamada Cada tempo em seu lugar, que traduz o que estou tentando escrever.
A letra diz assim: “Preciso refrear um pouco o meu desejo de ajudar. Não vou mudar um mundo louco, dando socos para o ar.” E depois: “Preciso me livrar do ofício de ter que ser sempre bom”, até porque, cá entre nós, é impossível ser bom o tempo todo.
O que dá para fazer é tentar ser melhor a cada dia, com pequenos gestos. Não precisa assinar um tratado de paz na ONU. Basta, muitas vezes, ser gentil com o colega de trabalho, elogiar o visual da amiga, oferecer um sorriso para quem está tendo um dia ruim, estender a mão a alguém que precisa de ajuda. Ser bom é isso e é dar-se conta da finitude da vida.
Como escreveu Gil em Tempo Rei, “não se iludam, não me iludo, tudo agora mesmo pode estar por um segundo”.