“De que adianta falar de motivos, às vezes basta um só, às vezes nem juntando todos.”
(José Saramago)
Ouvi, quando jovem, que não temos que necessariamente ser o melhor fazendo o que fazemos, até porque sempre haverá alguém que o faça melhor do que nós, mas temos, sim, a obrigação moral de tentar ser.
Mas, mesmo que haja consciência dessa obrigação, muitas vezes vacilamos na energia que colocamos nas nossas escolhas.
Outras vezes desistimos ao descobrir o trabalho que dá essa pretensão, mas nada nos eximirá da responsabilidade de fazer com que esse intrometido que cruzou a nossa frente bata todos os recordes.
Quando revisamos biografias de sucesso, ainda desconcerta muito a evidência do quanto fatores aleatórios foram decisivos no desfecho. Saramago, nascido Jose de Souza, em 16 de novembro de 1922 (completou-se recentemente o centenário de seu nascimento), só soube por ocasião do serviço militar que o escrivão, por desleixo ou deboche, agregara ao seu nome uma alcunha da família, procedente de Azinhaga, uma região de Ribatejo, onde “saramago”, uma herbácea florida, é característica daquela região. Jose viveu lá até os dois anos, quando mudou-se para Lisboa.
Jose, assim Saramago, o maior escritor contemporâneo da língua portuguesa, é um desses exemplos de pessoas comuns, soltas no mundo sem manual de instruções. Sem formação acadêmica, fez um curso profissionalizante e foi trabalhar de serralheiro, mas sem desviar os olhos da leitura, que o arrastava com frequência para as bibliotecas de Lisboa. O futuro mostrou que a inclusão de aulas de leitura no curso de serralheiro não tinha sido em vão.
A atração pelas letras resultou num primeiro esboço, Terra do Pecado, em 1947, que, tendo sido quase ignorado, arrefeceu seu entusiasmo, mantendo-o conectado a obras menores enquanto sobrevivia como tradutor e editor de jornal. Em 1975, retornou ao Diário de Notícias como diretor-adjunto, e lá permaneceu por 10 meses, até 25 de novembro do mesmo ano, quando os militares portugueses intervieram na editora, em represália ao que consideraram excessos da Revolução dos Cravos, demitindo vários funcionários.
Enquanto, para a maioria das pessoas, uma demissão é uma marca negativa, para Saramago representou uma virada de chave. Por conta dessa demissão, ele resolveu dedicar-se apenas à literatura, substituindo de vez o jornalista pelo ficcionista: “Estava à espera de que as pedras do quebra-cabeças do destino – supondo-se que haja destino, não creio que haja – se organizassem. É preciso que cada um de nós ponha a sua própria pedra, e a que eu pus foi esta: ‘não vou mais procurar trabalho’”.
A dedicação exclusiva à literatura liberou a genialidade de sua cabeça prodigiosa, mas foi por conta do tal destino que ele só deslanchou no mundo das letras, em plena maturidade, com uma produção literária impressionante a partir de então. O Evangelho Segundo Jesus Cristo foi sem dúvida sua obra mais polêmica, tendo despertado a ira da Igreja por apresentar um Jesus muito mais humano, suscetível a erros e tentações.
Adepto do realismo fantástico, produziu pérolas, três delas baseadas no “se”: se todos ficassem cegos (Ensaio sobre a Cegueira), se ninguém morresse (As Intermitências da Morte), se todos votassem em branco (Ensaio sobre a Lucidez).
No último quarto da sua vida, produziu como ninguém, publicando duas dezenas de livros, poesias, peças de teatro e romances famosos, que foram adaptados para o cinema. Em 1995, recebeu o Prêmio Camões, o maior galardão da língua portuguesa, e, em 1998, consagrou-se definitivamente como o único autor da língua portuguesa a receber o Prêmio Nobel de Literatura.
Saramago não nasceu escritor, mas se fez escritor. Seu mérito maior: acreditar em si mesmo, sem jamais colocar na equação do futuro, o tempo previsto de vida por viver.
E, neste século que festejamos, sobreviveu através de suas palavras. O engenho de Saramago sempre esteve à serviço da sabedoria.