Como toda crise se encarrega de expor o que temos de melhor e de pior, é impressionante o tamanho da legião de híbridos que reúnem num único exemplar promotor e juiz, desprovidos naturalmente de qualquer resíduo de empatia ou generosidade.
Quem se der ao trabalho de passear pelas redes sociais (um passeio temerário pelo risco de contaminação!) ficará impactado pela incapacidade de dar chance ao contraditório e revelar um mínimo de tolerância.
Na formatação de um simpósio sobre liberdade de opinião como critério de diferenciação social, coube-me eleger situações que revelassem o quanto podemos estar enganados com o juízo açodado. Uma dessas estórias viralizou nas redes sociais, como a mostrar que no mesmo universo há veneno e antídoto.
Uma velhinha, na preparação para uma viagem de trem, comprou um pacote de bolachas com recheio de chocolate, daquelas que nunca podia comer em casa, sob a vigilância implacável da filha, uma animada voluntária da guerrilha antidiabetes. Enquanto esperava o trem, acomodou-se na extremidade de um banco de pedra na plataforma, ocupado na outra ponta por um jovem cabeludo que cantarolava uma música que chegava pelo fone de ouvido. Apesar do espaço entre eles ser pequeno, não se animou a encará-lo, até que foi despertada pelo som inconfundível de um pacote sendo manipulado. Não acreditou quando percebeu que o cara de pau estava comendo uma das suas bolachas.
todos sentiríamos mais vergonha do que desagravo se soubéssemos o que o outro pensava ou sofria quando disse ou fez o que fez ou disse.
Depois de uma encarada feroz, enfiou a mão no pacote e apanhou uma bolacha, sem desviar o olho, como a mostrar que estava demarcando seu território. Mais furiosa ficou quando o descarado sorriu. E então iniciou-se o que parecia uma disputa de poderes. A cada bolacha que ele mastigava debochado, ela retribuía em fúria crescente. Até que chegaram à última bolacha, quando ele se excedeu: partiu-a ao meio e ofereceu-lhe a outra metade. Quando finalmente o trem chegou, ela carregou bolsa e fúria até a escada de acesso e sentou-se no primeiro banco disponível. Uma rápida olhada pela janela completou o estoque de ódio, pois o cretino continuava acompanhando com a cabeça o ritmo de sua música estúpida, com o mesmo sorrisinho idiota. Quando o cobrador pediu-lhe passagem, ela abriu a bolsa e teve um choque: o seu pacote de bolachas estava lá, intacto. O trem já arrancava, não havia tempo para desculpas, e sem olhar para trás agradeceu que a celeridade da locomotiva arrastasse para longe a vergonha do julgamento precipitado.
Outra estória em um cenário parecido: em um domingo ensolarado do outono de Nova York, o metrô deslizava silencioso, até que os ocupantes daquele vagão tiveram o sossego interrompido pela entrada de um homem com seus quatro filhos, com idade presumida entre sete e 11 anos, e com eles uma balbúrdia inesperada. O pai sentou-se ao lado de uma senhora e pareceu cochilar enquanto os moleques infernizavam a vida dos passageiros, correndo, gritando, interrompendo os que queriam ler e despertando os sonolentos.
Quando a arruaça chegou ao máximo, a senhora tocou o pai com o cotovelo e descarregou sua irritação: "O senhor não acha que já é hora de educar os seus rebentos? Ninguém os suporta mais!". O pobre homem, despertado pelo comentário agressivo, concordou: "Desculpe, estou sem dormir desde ontem, mas acho que a senhora tem razão. Só lhe peço que seja tolerante com meus meninos porque eles perderam a mãe há duas horas, e nem eu, nem eles, estamos sabendo como lidar com isso".
A pressa em julgamento, de qualquer tipo e sobre qualquer atitude, é uma temeridade, com alto risco de injustiça, sempre punida pelo constrangimento do afobado!
E provavelmente todos sentiríamos mais vergonha do que desagravo se soubéssemos o que o outro pensava ou sofria quando disse ou fez o que fez ou disse.