"Vida é o desejo de continuar vivendo e viva é aquela coisa que vai morrer. A vida serve é para se morrer dela." (Clarice Lispector)
O acúmulo de danos, como viuvez, perda dos parceiros e distanciamento dos filhos ocupados com suas próprias coisas, vai decorando com tantos penduricalhos a imagem da morte que, lá pelas tantas, ela começa a parecer "natural" como só os velhos conseguem perceber. Sempre haverá os pusilânimes a assumir que não estão prontos (e em algum momento estarão?), como se a vida deles tivesse sido uma festa imperdível, daquelas que a gente nem acredita que amanheceu.
Os mais realistas assumem que o tempo passou, a vaga que fora ingenuamente tratada como vitalícia tinha prazo de validade, e a moita precisava ser desocupada.
Quando a legião dos veteranos é enjaulada com a justificativa humanitária de protegê-la das ameaças virais, os comportamentos divergem. Alguns se transformam no que sempre foram, uns chatos, ególatras, gigantes de umbigo e anões de solidariedade. Como passaram a vida feito mimados, cuidando de si, sem nenhum olhar para o mundo periférico, não será agora, com dependências reais de familiares e amigos, que acordarão para a necessidade de oferecer algo para legitimar a expectativa de receber.
E então se queixam, sem perceber que nada espanta mais a parceria do que a lamúria constante que conduz em marcha acelerada para o bazar da morte desejada.
A solidão compulsória acabou por concentrar em si o desânimo que o deprimido espalhava por aí, impunemente.
Outros, os destemidos, veem o ciclo vital com a naturalidade de quem entende que a desgaste pelo uso das potencialidades físicas, o cumprimento de metas estabelecidas e a capacitação da prole para o futuro que ela mesma terá que construir, por conta e risco, podem, e seria ótimo que conseguissem, tornar a figura do avô ou avó memorável. Mas que ninguém confunda com indispensável.
Só a morte dos filhos pela cruel inversão da ordem natural da vida produz a dor irreparável da perda. A morte dos velhos produz saudade, em dose proporcional ao afeto que deixaram como herança. E a vida segue, porque ela só sabe fazer isso.
O que a solidão imposta por esta interminável quarentena, nutrida por medo, ameaças e culpas, provocou foi uma aceleração dessas descobertas que estavam ofuscadas pelo deleite do convívio social, pela possibilidade de distrair os espíritos com os encantos das artes e com o colírio dos olhos cansados guardado na beleza de outros mundos, que estiveram sempre escancarados à espera de serem flagrados pela curiosidade dos viajantes.
Muito das depressões que estão a exigir drogas e ajudas psicológicas insaciáveis nasceram da flagrante incapacidade das pessoas de assumirem autonomia de desejos e frustrações. A solidão compulsória acabou por concentrar em si o desânimo que o deprimido espalhava por aí, impunemente.
Esse tipo de comportamento ficou muito prevalente. E muitas pessoas buscam o conforto de conversar com o seu médico, para falar da solidão, essa doença cuja melhor vacina é a oferta constante de generosidade, que só convence se for dissociada da necessidade.
Felizmente, para a sorte de ouvidos exaustos dos lamentos, alguns conservam o espírito leve, capaz de manter intacto o humor. Como o Ariosto, um homem velho, como são todos os Ariostos. Com 93 anos, saindo de uma UTI de covid, depois de 10 dias penados, perguntado de como tinha sido essa experiência, respondeu com uma cara debochada: "Êta doencinha danada, doutor. Se pega um velho, mata!".
O miserável do vírus não tinha ideia de com quem se metera. Bem feito pra ele.