A vida cotidiana, em geral, é muito pobre de emoções. Para os médicos, isso se torna muito aparente, pelo jeito com a que a maioria das pessoas maneja a memória de suas doenças.
Uma doença grave, uma grande cirurgia ou uma passagem por uma UTI passa a ocupar um lugar tão proeminente no imaginário dos envolvidos, e a história é tantas vezes repetida, sempre acompanhada de glamorizações para torná-la ainda mais interessante, que depois de um tempo os personagens da história original não mais a reconhecem.
Isso se reflete no pasmo dos médicos ao ouvirem relatos em que lhes foram atribuídas declarações que jamais, sob nenhuma hipótese, as profeririam.
A reverência internacional a Maradona despertou a repulsa dos que não conseguem separar a sua vida fora de campo do talento genial com a bola.
Se precisamos nos socorrer de tais artifícios para tornar nossas vidas mais empolgantes, e os eventos com este poder de impactar são raros (se fossem frequentes, banalizariam!), por ai começaremos a entender melhor a necessidade de cultuar ídolos, que estarão sempre entre aqueles que, por algum a talento especial, nos brindem com emoção gratuita.
Invariavelmente, esse herói idealizado tem um atributo cuja falta nos esmaga: a coragem. E essa qualidade invejável traz um encantamento que não respeita fronteiras.
Vi turistas lotando a praia de Varadero, abraçados em bandeiras brasileiras, e cubanos chorando a morte de Ayrton Senna pelas ruas de Havana, que nunca tinha sido visto de perto por nenhum deles.
A história agora se repete, e uma mexicana conta que soube por sua mãe que, no momento do parto, seu pai não esteve presente: tinha ido ao Estádio Nacional ver o Maradona jogar!
A reverência internacional a Maradona despertou a repulsa dos que não conseguem separar a sua vida desregrada e a afiliação política sectária do talento genial que lotava os estádios por onde andou – e mereceu aplausos até de seus adversários de campo.
Fiquei pensando em como um alienígena descomprometido (eles, em geral, são assim) aconselharia a massa que se aglutinou imprudentemente para um choro solidário pela morte do seu ídolo: “Paciência pessoal, tudo tem seu tempo. Tranquem a dor da perda, e aguardem a liberação da vacina!”.
Claro que parti do pressuposto de que os alienígenas desconhecem o conceito de idolatria, que envolve sentimentos comuns indissociáveis, como dependência emocional, deslumbramento imaturo e carência afetiva. Mas quem disse que somos perfeitos?
Prefiro reverenciar o encanto do baixinho de pernas curtas, uma estabilidade impressionante, que resistia ao impacto dos seus desesperados marcadores e seguia soberano no caminho vertical para o gol. E esquecer a tristeza do Dieguito, que ascendeu com uma rapidez incompatível com sua pobre estrutura emocional. Se soubermos reconhecer seu talento incomum, seremos críticos menos ferozes e, quem sabe, sublimaremos os defeitos dele. Pelo menos a parte daqueles que se pareçam com os nossos.
Selecionei três frases que gostaria de ter escrito e que foram ditas por quem teve a ventura do convívio epidérmico:
Falcão: “Dentro de campo foi um Deus! Fora dele, um ser humano!”.
Guardiola: “Não importa o que o Maradona fez pra vida dele. Eu sei o que ele fez pras nossas vidas!”.
Um torcedor argentino, cantando a sua dor: “Diego, hoje foi o dia mais triste da minha vida, porque você foi o maior responsável pelos meus dias mais felizes”.
A necessidade de ídolos para fazer a vida suportável tem muito a ver com uma autoestima cambaleante e com a noção dilacerante de nossa irretocável insignificância. Mas e se essa dependência for só o que nos resta?