Qualquer projeção que se faça em relação ao que virá depois desse pesadelo será um pretensioso exercício de futurologia, típico de tempos de desocupação compulsória.
Mas, abstraídos cartomantes e tarôs, um olhar crítico sobre o que já aconteceu permite identificar alguns grupos mais fragilizados e algumas atividades mais ameaçadas.
Do ponto de vista médico, os pacientes crônicos estão sendo penalizados pela desassistência imposta pela falta de leitos hospitalares em centros com grande proliferação da pandemia, como Manaus, São Paulo e Rio, e em outros, como no caso do RS, pelo medo de irem ao hospital, e lá se infectarem. Vivemos aqui, e tomara que a calmaria persista, a curiosa situação de hospitais vazios e os pacientes crônicos, especialmente os idosos, subestimando a sua doença antiga e morrendo em casa por medo da doença nova. Uma ironia para quem, por falta de discernimento, exagerou na observância do Fique em Casa.
Vivemos a ironia de hospitais vazios e pacientes crônicos morrendo em casa por medo da doença nova.
A estratégia do distanciamento social, vigente em quase todos os países, tem provocado efeitos diferentes dependendo do momento em que foi implantada. Quando precoce, ela desacelera a progressão da doença, dando chance a que assistência médica seja racionalizada em termos de disponibilidade de leitos, especialmente de terapia intensiva. Quando a propagação do vírus já ocorreu, o confinamento, por agrupar pessoas contaminadas, aumenta exponencialmente o número de casos novos. Isso ocorreu, provavelmente, na Lombardia, onde houve uma resistência inicial de reconhecer a extensão da pandemia, que já se alastrava por todo sul da Europa. Recorde-se da campanha ruidosa: “Milão não pode parar!”
Por outro lado, tudo o que tem sido copiado de países desenvolvidos precisa ser revisto sob o prisma da nossa gigantesca desigualdade social, escancarada covardemente com a chegada do vírus nas favelas. E que deixará como legado a vergonha de terem sido, historicamente, tratadas como comunidades invisíveis, que só eram identificadas quando vestiam fantasias coloridas para desfilar no Carnaval.
Quem imaginar que o fim da quarentena significará a volta à normalidade levará um susto ao descobrir grandes lacunas geradas por atividades que literalmente desapareceram. O turismo, por exemplo, que representava 8% do PIB nacional, e foi um dos setores mais atingidos, terá que ser repensado para realocar as 300 mil demissões.
Os trabalhadores autônomos, inclusive os que nem têm CPF, precisarão de créditos extras, porque, se não, ao fim do trimestre da ajuda de R$600, descobriremos que este grande medo que tem atrapalhado o sono dos abastados e gerado tantos distúrbios psiquiátricos era apenas premonição do caos que sempre acompanha uma sociedade que tenha como único objetivo a sobrevivência egoísta.
E que ninguém seja ingênuo de propor, a quem tenha fome, as normas de convívio racional.