Não sei como as lembranças são conservadas, mas algumas duram para sempre tal qual preservadas em redomas de mármore. Outras, por frágeis ou insignificantes, se esvaem como se tivessem sido varridas pela brisa protetora e generosa do esquecimento.
Mas mesmo aquelas que queremos preservar como nosso patrimônio de raiz não são estáveis, e periodicamente precisamos sacudi-las, como forma de trazer à tona aquilo que o tempo, presunçoso e descuidado, foi desbotando. Outras vezes, quando a lembrança é assim revisitada, parece diferente, seja porque perdemos pelo caminho um pedaço do ocorrido, ou porque percebemos agora um sentido que lá atrás tinha escapado.
Neste inverno, completaram-se 10 anos da morte do meu pai, bem velhinho, com um último semestre de sensório comprometido, e todas as condições de dependência e fragilidade que, os ingênuos imaginam, deveriam servir para atenuar a sensação de perda.
Certamente, cada filho administrou a saudade do seu jeito com características próprias, alimentadas por relacionamentos díspares, em proximidade, carência, afinidade, ciúme, semelhança, afeto e proteção. Retrospectivamente, gostaria muito de ter vivido mais perto do meu pai, e esta percepção, como quase sempre acontece, só ficou muito clara depois que ele se foi, deixando este rastro de saudade e remorso, pontudos como uma acusação.
Passado este tempo, aceitei me perdoar porque não poderia mesmo ser de outra forma, pela distância e diversidade do que fazíamos. E ele sempre deixou claro que entendia que, sendo como éramos, com tarefas tão diversas, tínhamos que aceitar as diferenças. Lembro-me de um telefonema na quase manhã do dia em que seu neto fazia 20 anos, em que ele começou assim: "Meu filho, estou te ligando assim tão cedo para dizer que você tem muita sorte por ter um filho como o Fábio, e que sou feliz porque um velho como eu, que ama esta terra como eu amo, ter um neto que ama da mesma maneira, é uma coisa que..." Então fez uma pausa, suspirou, e concluiu: "Mas isso, talvez não entendas... deixa prá lá... E a minha nora, como vai?". A brusca mudança de assunto era o jeito de dizer que não me considerava o melhor interlocutor para falar do amor que ele tinha pela fazenda, que adorava de paixão. E então falávamos de outros assuntos, e tenho muita saudade do seu jeito sério de contar coisas engraçadas. Por fim, comentávamos das minhas conquistas profissionais, e destas, de longe, a que mais lhe encantou foi o transplante de pulmão com doadores vivos, que ele acompanhava na mídia com entusiasmo.
Sistematicamente perguntava pelo Henrique, o primeiro paciente, a quem se referia como se tivesse se transformado em um parente muito querido. E sempre terminava com uma observação entusiasmada: "Essa foi muito boa!".
"Sabe, pai, eu também acho que foi, e muita gente repete que sim, mas depois de todo esse tempo, preciso te fazer uma confissão: nenhuma placa, troféu ou homenagem teve a força do teu olho brilhando. Afinal, na busca da tua admiração, aprendi que todo filho procura desesperadamente ser visto pelo pai como alguém melhor do que de fato é. E, neste domingo, no teu dia, nada vai me entristecer mais do que a consciência de que nunca mais vou poder fazer alguma coisa, qualquer coisa, para te impressionar. E eu queria tanto." Porque o pai da gente só morre com a gente. Nunca antes. Afinal, não é esta a função mais generosa da memória?