Morrer não é tão simples. Pelo menos não para os bem-amados. Para outros, as ãncoras de afeto foram sempre tão frágeis e vacilantes que a morte será vista apenas como o coroamento de uma vida sem graça. Há ainda os que fizeram de suas vidas o tormento dos que tiveram o azar de cruzar com eles e, para essas vítimas, a morte do carrasco terá ares indisfarçáveis de libertação.
Entre uns e outros transitam os dissimulados que, protegidos por uma carapaça competente, não permitem que, de fora, se perceba que nível de afeto exercitam, se é que algum.
A Isolina tinha uns 60 anos, cabelos de um grisalho natural, sempre presos por um coque discreto e burocrático. Os olhos, muito azuis, tinham uma lassidão resignada que atribuí à percepção de que seu marido, de quem cuidava com um desvelo exemplar, não viveria muito tempo – ofegante que estava nos últimos tempos em consequência da perda de uma parte do pulmão por um câncer operado havia 10 anos e, pela progressão do enfisema, ambos resultantes de 50 anos de tabagismo desenfreado. Com menos de 20% de capacidade pulmonar, cada mudança de temperatura era prenúncio de internação, depois de uns dias em que sempre tentava se tratar em casa com o mini-hospital que montara.
Voltando de umas férias, soube que o Klaus tinha morrido de uma pneumonia extensa e que a Isolina tinha ligado, pedindo à secretária que me contasse. Semanas depois, ela marcou uma consulta e antecipou que precisava me agradecer. Quase não a reconheci: o cabelo acaju em um corte elegante e uma maquiagem discreta completavam uma camuflagem quase perfeita. Quando ela sorriu, percebi, depois de tantos anos de convívio, que a Isolina tinha dentes muito bonitos e a tristeza dos olhos tinha escorrido.
Comecei a conversa com uma obviedade: "E, então, perdemos o Klaus!". Ela suspirou, umedeceu os olhos sem chorar e disse, com toda a calma: "Pois é, doutor, cuidei dele no limite das minhas possibilidades, e ninguém dirá que outra poderia tê-lo feito melhor. Também por isso estou segura e serena para lhe dizer que há 45 dias enterrei a pior pessoa que jamais conheci".
Havia uma naturalidade na voz ao fazer aquela declaração inesperada, que me pareceu que ela se preparara há décadas para dizer aquilo. Sempre se espera que o tom da voz seja condizente com o discurso, por isso nada impacta mais do que o anúncio de um rancor, que agora se entendia antigo, em voz baixa e meiga, quase sussurrada. Apanhado de surpresa, não soube o que dizer, e estendi-lhe a mão que ela apanhou com cuidado, examinou dorso e palma, e completou: "Sempre admirei suas mãos, mas em cada consulta em que meu marido elogiava o talento delas, capazes que tinham sido de remover um tumor que outros cirurgiões consideraram inoperável, eu voltava para elas todo o meu rancor por terem prolongado meu sofrimento".
Retirei minha mão devagar, pois tinha planos para ela no futuro, mas tentando não melindrar demasiado a Isolina. Em algum lugar aprendi que pessoas capazes de reprimir ódio com tanta perfeição não devem ser magoadas, pelo menos não sem necessidade. E me afastei, caminhando rápido, de mãos nos bolsos.