São tão imprevisíveis a circunstância e o momento em que duas pessoas se flagram amigas, que a retrospectiva de amizades duradouras é sempre um festival de encontros inusitados em que alguma afinidade carinhosa foi despertada sabe-se lá por qual estranho mecanismo. Muitas vezes, a sintonia é percebida mas não se completa porque, apressados, dispersamos e, por esses atropelos da vida moderna, nos distanciamos de amigos potenciais, deixando a frustrante sensação de que poderíamos ter sido.
Outras vezes, o contato inicial é tormentoso e precisamos relevar a adversidade e a rudeza do primeiro encontro e reiniciar, cheios de boa intenção, mas sem nenhuma certeza de que seremos mais do que mornas cortesias, essas que fazem a rotina entre civilizados.
Eu abomino chegar atrasado, mas naquela quarta-feira insana não consegui evitar. Entrei no consultório com a pressa da consciência pesada e pedi que a secretária passasse logo o primeiro paciente. Foi assim que encontrei o Marquinho pela primeira vez. Antes que pudesse me desculpar ou, mais remotamente, perguntar no que podia lhe ajudar, o baixinho empertigado iniciou um discurso inflamado sobre como os médicos são uns prepotentes, que não respeitam compromissos e tratam todos os pacientes como se fossem uns desocupados. Antes que me organizasse para reagir ao tiroteio, ele mergulhou num acesso de tosse tão intenso, que resultou em perda de consciência.
Trinta segundos depois, com olhar meio esgazeado, ele recontatou com o mundo, sem saber que aquele tempo curto tinha sido suficiente para o diagnóstico de colapso traqueal, uma patologia de entendimento recente, em que há uma flacidez da parede da traqueia, que desaba durante o esforço da tosse, provocando mais tosse e, nas formas mais graves, redução importante da circulação cerebral. Alguns desses pacientes referem ter aprendido que, iniciado o acesso de tosse, a primeira medida devia ser estacionar o carro, porque iam perder a consciência.
Para recomeçar a desastrada consulta, me pareceu recomendável reagir com a modesta pretensão de tentar algum controle sobre aquele tipo capaz de conservar o olhar de superioridade, mesmo sentado à beira do precipício. Achei conveniente um pouco de provocação: "Foi bom você ter me esperado, senão eu teria ido ao seu enterro".
De ânimos serenados, iniciamos uma amizade que foi fundamental no enfrentamento de situações subsequentes difíceis, que envolveram inclusive o diagnóstico de uma neoplasia rara, que exigiu uma cirurgia de alto risco. Acho que tenho muitos amigos, mas em qualquer lista de prediletos o Marquinho será sempre um dos cabeças de chave.
Um dia desses, passados seis anos daquela consulta tumultuada, ele confessou à minha filha que, no dia seguinte, ele ainda não tinha decidido se queria ser meu amigo, mas que, quando entrei na sala da broncoscopia e lhe dei um beijo em cada bochecha, ele pensou: "Me entreguei, faça de mim o que quiser!".
Eu sei que 24 horas não farão nenhuma diferença na história de uma amizade definitiva, mas tenho um certo orgulho de ter percebido que seria amigo dele com um dia inteiro de antecedência. A propósito, respondendo a uma mensagem de fim de ano, ele escreveu: "Sempre haverá esperança quando um amigo nos vê melhores do que somos".