A gratidão e a fidelidade foram paridas do mesmo óvulo e deviam ser mantidas como siamesas e valorizadas como atributos dos seres superiores. A vida, no entanto, se empenha em depreciá-las pela banalização da injúria, do desapreço, da calúnia e da traição.
Mas a eventual prosperidade dos ingratos e infiéis não deve induzir à ingenuidade de supor que o fiel e agradecido seja um tolo, ou que o espertinho mal-agradecido valha alguma coisa.
Porque não importa quantos degraus a ingratidão permita ascender, ela permanecerá como um estigma, daqueles duradouros, que colocam pedras no travesseiro, manchas na pele e quebra-molas na alma.
Numa época em que levar vantagem tem sido estupidamente interpretado como sinônimo de inteligência, os gratos e fiéis precisam ser valorizados, porque são símbolos de uma reserva moral que não podemos permitir que se extinga.
Os tempos mudaram, e as vilanias trocaram de nome. O velho traíra de todos os tempos, ou o malacara da velha guarda rio-grandense, tem hoje a denominação de delator premiado ou, para parecer menos repulsivo (ainda que o cheiro seja o mesmo), colaborador premiado.
Não há nenhuma evidência de que essas mudanças nos tornaram melhores como cidadãos. Pelo contrário, o ar de pretensa superioridade dos delatores ao depor dá a nauseante sensação de que eles se acham paradigmas da moral moderna quando, na verdade, são uns escrotos, querendo passar uma mensagem de dignidade que para eles é uma entidade abstrata, encontrável nuns tipos estranhos que, por mania de honestidade, envelhecem mais pobres do que mereciam. Ou fizeram por merecer com essa irritante mania de parecer superiores aos outros integrantes do pacote.
Curiosamente, os desprendidos, esses exemplares de índole qualificada que, ao exercerem seu papel social, engrandecem a espécie humana, são frequentemente depreciados pelos colegas de faixa social, que não suportam a comparação que os diminui aos olhos do mundo civilizado.
Resistir aos comentários invejosos representa então uma exigência extra de maturidade, inspirado na convicção de fazer o que é certo, por estar convencido de que esta é a mais proverbial fonte geradora de autoestima.
Nas muitas encruzilhadas da vida, é constante a descoberta de que o correto é o mais difícil, mas que ninguém encolhe por dividir feitos e espalhar gratidão.
O ingrato, insaciável na sua pretensão narcisista, renuncia à grandeza de compartilhar e assume para si autoria e talento que todos sabem que não tem. A comodidade acaba prevalecendo e, com ela, a sensação pegajosa da covardia.
Certamente por isso, todo ingrato é frouxo e covarde, uma combinação para marcar a alma como uma tatuagem que pode ser colorida e rebuscada, mas inútil em mascarar a pobreza do caráter.
Sem direito a compensação ou arrependimento, a ingratidão estará lá para sempre, como uma imagem impressa num espelho gigante, que poderá ser mil vezes estilhaçado que haverá de guardar ao menos um pedacinho delator para refletir, na essência, a sua mesquinhez.