O conceito de normal foi ficando tão impreciso que até o elogio se sente ameaçado. Um dia desses, numa chamada de apresentação para uma conferência, fui citado como um profissional que, além de reconhecidamente competente, é um ser humano. Mesmo para quem nunca tenha tido uma crise de identidade, é fácil imaginar o alívio que se seguiu a esta revelação surpreendente e extemporânea.
Essa introdução é para anunciar que vou falar de sentimentos de pessoas chamadas normais, essas que se parecem muito com as outras, ou seja, as que não se metem a bestas, as comuns. Como nós.
Por muito conviver comigo mesmo e com essas pessoas, aprendi que, depois de uma boa ação, não há nada de errado em se esperar um reconhecimento, ou pelo menos um gesto que possa sugeri-lo. E já vou antecipando que não conheço nenhum profissional mais afeito a isso do que o médico, que, desde muito cedo, percebe que a sua tarefa cotidiana é, essencialmente, um exercício de sedução e conquista, sempre na expectativa de que, no fim, a gratidão nos compense e nos redima.
E porque dependemos dessa retribuição para nos sentirmos vivos e justificados é que ficamos tão desarvorados quando o desafeto e a injúria nos jogam na contramão do carinho pretendido ou fantasiado. Perguntem a um médico que já passou por esta experiência horrorosa o que foi o pior de ter sido acionado judicialmente. A possibilidade do prejuízo econômico? Claro que não. Nada agride mais um médico carente do que o desapreço do ex-paciente expresso naqueles termos afetados do linguajar forense.
Mas fora dessa situação extremada, é comum que o médico animado com o produto do seu trabalho considere, se não obrigatório, pelo menos previsível, o agradecimento do paciente.
Carlos Telles, além de generoso, é um excelente neurocirurgião, altamente qualificado no tratamento da dor, no que conseguiu uma posição de referência nacional. Impressionado com a intensidade do sofrimento de um paciente que não comia nem dormia, dilacerado por uma dor insuportável, que se arrastava por semanas, indicou-lhe uma cordotomia cervical, uma operação delicada, em que se secciona, com precisão milimétrica, uma raiz nervosa no pescoço. Na manhã seguinte, encontrou o paciente ressonando placidamente. Ótimo sinal. Não resistiu despertar-lhe para confirmar a proeza: "Como passou a noite, alguma dor?". "Não, doutor. Não estou sentindo nada." "Nada, nada?" "Nada, nada!".
Então, a impaciência interior irrompeu: "Depois de tudo o que fizemos, é só isso que o senhor tem para me dizer?".
"Ah, doutor, deixe eu ficar quietinho aqui no meu canto. De qualquer jeito, ninguém ia entender a minha felicidade de não estar sentindo nada depois de três meses pensando em dor 24 horas por dia!".
A alegria pelo fim do sofrimento pode ser silenciosa. Mas em algum lugar da desorganizada mochila das reações humanas estará o crachá encantado da gratidão.