Um leigo desavisado que frequente a mídia sensacionalista deve estar impressionado com a quantidade de erros médicos, reportados justamente no momento em que se anunciam os mais modernos avanços tecnológicos que deveriam favorecer o exercício da medicina.
Antes que os mais apressados cogitem um improvável processo de emburrecimento coletivo, algumas questões menos aparentes precisam ser analisadas, porque talvez elas tornem menos obscura a relação do médico com a sociedade, que não tem como dispensá-lo.
No afã de justificar a mudança de afeição da comunidade pela figura do médico, os arautos do modernismo dirão que a medicina atual se tornou mais intervencionista, e que a imperiosa necessidade de estar sempre tomando decisões diagnósticas e terapêuticas implica maior probabilidade de erro.
Os paranoicos atribuirão as denúncias a uma campanha de desmistificação, orquestrada por invejosos que, em gozo de saúde perfeita, cometem a temeridade de acreditar que ficarão assim para sempre.
Os academicistas afirmarão convictos que esses erros refletem apenas o despreparo de nossas escolas médicas, muitas das quais sem as mínimas condições técnicas e pessoais para formar alguém. E todos estarão de alguma maneira corretos, mas uns e outros apenas arranharão a verdade que se oculta atrás do biombo invisível das manifestações aparentemente casuais, inocentes e despretensiosas.
Quem, no entanto, conhece um pouco do passado recente da medicina americana e acredita que a história sempre se repete sabe que há mais do que ânsia de perfeccionismo no ar. As grandes e poderosas companhias de seguro, que assumem o controle da saúde na maioria dos países desenvolvidos, estão também interessadas numa outra e sedutora fatia do mercado: o seguro profissional do médico. E ninguém duvide do que essas empresas são capazes de mover para dar curso aos seus projetos milionários.
Nos EUA, as constantes denúncias tornaram impossível a qualquer médico trabalhar sem o seu seguro individual, que lhe permita sobreviver às pesadíssimas indenizações requeridas por qualquer dano real ou imaginário.
Inveja-se no Brasil a qualificação tecnológica da medicina americana, mas ignora-se o pesado ônus resultante dos métodos empregados para implantar o sistema vigente por lá.
O clima decorrente da ameaça potencial trouxe duas consequências funestas: a primeira é que a medicina americana é a mais cara do mundo, consumindo 18% do orçamento da nação mais rica do planeta, em grande parte decorrente da atitude defensiva do médico interessado, antes de mais nada, em se precaver.
A segunda é que a relação médico-paciente é impessoal e tão mais rígida quanto mais diferenciado for o paciente, que é sempre visto como um potencial contestador. E o bacharel de porta de hospital, tão ridículo quanto o seu homônimo de porta de cadeia, é o permanente sinalizador de que o pior sempre está por vir.
Como as carências humanas são as mesmas, independentemente de PIBs, hemisférios e latitudes, o paciente americano, que tem acesso à medicina tecnicamente mais qualificada é, paradoxalmente, um grande queixoso. Ele não consegue entender que num pacote tão caro não haja espaço para um pouquinho de afeto!
Como copiadores bem intencionados que assumidamente somos, resta-nos a oportunidade de selecionar os benefícios e deletar a rigidez de relações meramente comerciais, tão contrastantes com a fragilidade de quem está doente, e com a grandeza profissional de quem sempre se encantará com a indescritível euforia de aliviar sofrimento.
E, como cidadãos, cabe-nos desmascarar os inescrupulosos que usam a mídia para, camufladamente, vender um produto que não teriam coragem de anunciar.