Nada define melhor a grandeza de um país do que a eficiência da sua Justiça. Otto von Bismarck, o Chanceler de Ferro, ensinou isto a Sáenz Peña, que visitava a Alemanha no fim do século 19. Querendo saber como era a Argentina, Bismarck lhe fez apenas esta pergunta: "Como é a Justiça no seu país?". Contam que o presidente argentino teria voltado a Buenos Aires desapontado com a instantaneidade da entrevista, mas precisamos admitir que, em termos de objetividade, essa questão encerra tudo o que interessa saber quando queremos classificar uma nação.
O Brasil, um país muito mais jovem, adolescente ainda em democracia e direitos humanos, tem se esmerado em mostrar um Judiciário atuante, a ponto de, em inúmeras pesquisas recentes, ser rotulado como o mais confiável dos braços da República – o que não deve ser interpretado como sinônimo de excelência, tendo em vista que a comparação é desmerecida pelas trapalhadas do Executivo e a escassez de dignidade média do nosso parlamento.
Entretanto, seguindo a sina nacional de não completar nenhuma tarefa, num culto deprimente ao meio termo, a nossa Justiça tem esbarrado na constrangedora incapacidade de se fazer cumprir.
Não posso generalizar porque não tenho conhecimento de outros setores de atividade, mas na saúde estabeleceu-se a prática do mandado judicial inócuo. Um paciente, sentindo-se fraudado no seu direito de acesso à saúde como dever do Estado, entra com um mandado judicial, que é acolhido por um juiz que, incontinente, determina que se cumpra tal desígnio. A tarefa médica é executada, o paciente tem alta feliz da vida porque fez valer os seus direitos e a instituição hospitalar acaba penalizada por uma amnésia muito conveniente de quem devia pagar. Mais injusto ainda que esse tipo de punição recaia sobre os melhores hospitais, porque ninguém faria um esforço desses para ser atendido em instituições de segunda categoria.
Na área dos transplantes, a judicialização virou rotina: pacientes portadores de convênio descobrem, ao serem encaminhados para a cirurgia, que a Agência Nacional de Saúde Suplementar considera (sabe-se lá por qual critério) que os planos de saúde não precisam pagar transplante de fígado, coração, pulmão ou pâncreas. Em resumo, se o pobre infeliz que pagou plano de saúde a vida toda necessita de um transplante, mas errou na escolha do órgão doente, vai ter de encarar a precariedade do SUS.
Percebendo que se trata de uma óbvia aberração legal, o paciente, sentindo-se prejudicado, entra na Justiça e, como regra, o magistrado, com o senso de racionalidade intacto, ordena que o plano de saúde pague os custos do transplante. Depois de tudo, o hospital se dá conta que a remuneração insuficiente do SUS teria sido uma maravilha, se comparada a um transplante gratuito resultante da negativa do convênio em cumprir o mandado judicial.
Configura-se assim a Justiça do faz de conta, que, convenhamos, tem muito a ver com a cara do país, cuja construção será sempre vista como uma piada enquanto seus valores essenciais de compromisso e dignidade não forem levados a sério. A boa intenção é louvável, mas será inútil se for inconsequente.
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