Não seria nenhum exagero dizer que a política é um exercício de tolerância com a prática civilizada da hipocrisia. E com direito à agudização em situações assumidamente decisivas e dramáticas, quando então todos os limites do ridículo são transpostos com uma naturalidade chocante. Foi o que mais se viu no recente episódio do impeachment, de ambos os lados, com uma distribuição bilateral e simétrica de cinismo deslavado. Do lado do governo, a declaração de que a oposição só pensa em acabar com os programas sociais como se esses programas já não estivessem fazendo água porque, em busca da reeleição, foram consumidas todas as reservas do tesouro, mais os estoques dos bancos públicos e dos fundos de pensão, resultando nas tais pedaladas que envolveram números astronômicos. Como o mau gestor é incapaz de prever arrecadação para sustentá-los, vários programas, com benefícios louváveis como ProUni, Pronatec, Minha Casa Minha Vida e Bolsa Família, começaram a ter seus proventos ameaçados ou interrompidos. Se os petistas acreditam mesmo que destroçar a sétima economia do mundo não envolve crime de responsabilidade, dever-se-ia dar a eles o direito de concluírem o mandato, com a certeza de que a legião de desempregados que cresce exponencialmente se encarregaria de escorraçá-los antes do final desse desgoverno.
No fundo, o ex-presidente Lula sabe que agora, do jeito que está, não teria chance nenhuma, mas se a "direita golpista" der uma equilibrada na economia (e ela já mostrou que sabe fazer isso), ele poderá voltar com toda a força em 2018. E vamos combinar que pedalada fiscal é mais fácil de esquecer do que falsidade ideológica, obstrução de Justiça, tráfico de influência, triplex, sítios e essas inconveniências que, dizem, constam do pedido adicional de impeachment produzido pela OAB, que aguardaria engatilhado na gaveta do presidente da Câmara.
Pela oposição, o constrangimento de assumir que em 13 anos de governo petista não foi capaz de gerar uma liderança confiável (umazinha que fosse!), tendo que se socorrer nesse processo dito redentor, de uma figura escorregadia e sorrateira que, afora a dificuldade com o WhatsApp, é a expressão maior de um partido que, de tanto se moldar às exigências do poder circunstancialmente disponível, se tornou um aglomerado amorfo e pífio, como o aperto de mão do seu líder. As pessoas do bem, essas que sustentam o país com trabalho e produção, estão constrangidas em assumir que a busca de solução para o descalabro implantado pelo populismo desenfreado do PT dependa do PMDB, uma bancada que não se ofende e nunca revela indignação, nem cogita dessas crenças que imponham convicção, firmeza, e intransigência. Pelo contrário, o cuidado na prevenção de inimigos evitáveis parece ser parte fundamental do seu kit de sobrevivência, baseado no pressuposto que, se todos poderão ser aliados no futuro, não há razão para brigar com ninguém no presente. A naturalidade com que o presidente da Câmara chamava para votar o próximo deputado, depois de ter sido chamado de ladrão, dá bem a ideia do que sobrou do país que pretendemos reconstruir para poupar nossos descendentes da vergonha que sentimos, e deu todo o sentido ao clímax de hipocrisia quando ele clamou por misericórdia para o Brasil. Considerando a fonte invocadora, parece pouco provável que o pedido seja atendido, mas bem que precisávamos.