De todos os códigos que os humanos criaram para a convivência em harmonia, o "não matarás", sexto mandamento do Antigo Testamento, é o que permanece mais atual. É o crime punido com as mais severas penas no Código Penal da maioria dos países – ele e suas variantes, como o latrocínio. Com gravidade aumentada, quando planejado. Com punição mais rigorosa ainda, quando praticado por motivo torpe (repugnante, moralmente reprovável). Muito pior ainda, quando a vítima é indefesa.
Todos esses pecados se somam na tragédia ocorrida em Santa Catarina na manhã de terça-feira (4), na cidade poeticamente batizada de Saudades. O que há de pior do que matar crianças que recém começam a caminhar, que ainda tomam mamá? O que leva um sujeito a desrecalcar suas mágoas cortando em pedaços uma professora e uma funcionária de creche? As perguntas vêm aos borbotões, as respostas não aparecem.
Já vi crimes de quase todos os tipos, mas aqueles que nunca quero noticiar envolvem crianças. Por força da profissão, tive de fazer esse tipo de cobertura. Fui enviado por GZH ao Rio em 2011, quando um recalcado — admirador da rede terrorista Al Qaeda e dos atentados de 11 de setembro — matou 12 alunos numa escola em Realengo, até ser parado a tiros pela Polícia Militar. Ferido, ele se matou antes de se render.
Há pontos em comum entre esse caso e o de Saudades. Os dois jovens assassinos passavam o dia em jogos de computador, muitos deles violentos. Eram introspectivos e reclamavam de bullying supostamente sofrido na escola. O que espanta, além do fato de saírem para matar, é que façam isso aleatoriamente. Mas, em 36 anos de jornalismo, jamais cobri o caso de alguém que fez isso com crianças de colo, a quem sequer conhecia. Anjos, heroínas, como diz o cartaz colocado no lugar do crime, pela comunidade.
Um dos maiores escritores do Ocidente, o belga naturalizado Joseph Konrad, viajou pelo Congo em 1890, testemunhou massacres cometidos pelos colonialistas e disso tirou inspiração para o livro Coração das Trevas. O principal personagem é Kurtz, um europeu que enlouquece entre os africanos. As palavras finais dele, em meio a uma orgia de sangue, são “o horror, o horror”. Propositalmente, em 1979, o cineasta Francis Ford Coppola adaptou um trecho do livro de Konrad para seu filme Apocalypse Now, sobre a guerra do Vietnã. O filme tem como pano de fundo um militar norte-americano que enlouquece e cria um exército sanguinário particular, virando uma espécie de guia espiritual de uma tribo vietnamita. Ele também se chama Kurtz. Interpretado por Marlon Brando, o personagem termina seus dias balbuciando a frase: “O horror, o horror”.
É a perfeita definição para o que aconteceu em Saudades (SC) nesta semana. Lá ocorreu o indizível. O abominável.