Jair Bolsonaro, ao afirmar que o desaparecido político Fernando Santa Cruz não foi assassinado pela ditadura — e colocar a culpa do sumiço no grupo de esquerda ao qual ele estava ligado, a Ação Popular — contraria relatos de pessoas que atuavam na repressão política durante o regime militar e que assumiram ter envolvimento no assassinato daquele militante. É o caso do ex-delegado da Polícia Civil Cláudio Guerra, que atuava no Departamento de Ordem Política e Social (Dops).
Guerra se diz um matador arrependido. Em sua autobiografia, ditada a jornalistas e intitulada Memórias de uma Guerra Suja, de 2012, Guerra faz um trocadilho com seu sobrenome ao relatar como se envolveu no assassinato de cerca de cem pessoas durante a ditadura. Ele também liderava a Escuderie Le Coq, esquadrão da morte formado por policiais.
Assisti há duas semanas ao impressionante documentário Pastor Cláudio, estrelado pelo ex-delegado, hoje um pastor evangélico que se diz arrependido dos crimes. Ele assegura que incinerou pessoalmente 10 militantes ligados a guerrilhas de esquerda na Usina de Açúcar Cambayba, localizada no município de Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro. Um deles seria Fernando Santa Cruz, pai do atual presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. O local pertencia a um proprietário rural anticomunista.
Guerra reafirma o desaparecimento, tanto no filme quanto no livro, e também em depoimento na Comissão Nacional da Verdade. Conforme o ex-delegado, Santa Cruz, guerrilheiro pernambucano (a Comissão Nacional da Verdade afirma que não há comprovação de que ele tenha participado da guerrilha), estava no Rio no Carnaval de 1974 para visitar um irmão, Marcelo de Santa Cruz de Oliveira. Aproveitou para ver um amigo de infância, Eduardo Collier, também ligado a grupos de esquerda. Ao sair, Fernando advertiu seu irmão que, caso não voltasse até as 18h, teria sido preso.
Conforme depoimento de Guerra, Fernando e Eduardo "foram detidos por agentes do DOI-Codi/RJ (unidades de repressão política do Exército) e levados para a Casa da Morte, um centro clandestino de torturas administrado pelas Forças Armadas em Petrópolis, na região serrana do Rio. Lá estariam outros integrantes da AP, que acabaram assassinados. Os corpos deles foram transportados até Campos, onde Guerra administrou a incineração, relata o ex-delegado.
Além de Fernando Santa Cruz, Guerra admite ter levado até Campos os corpos de João Batista Rita, Joaquim Pires Cerveira, David Capistrano da Costa, João Massena Melo, Eduardo Collier Filho, José Roman, Luiz Ignácio Maranhão Filho, Armando Teixeira Fructuoso, Thomaz Antônio da Silva Meirelles Netto, Ana Kucinski e Wilson Silva.
Outro que falou a respeito na Comissão da Verdade é o ex-sargento Marival Chaves do Canto, ex-analista do DOI-Codi. Ele disse que os assassinatos foram ordenados pelos coronéis do Exército José Brant Teixeira e Paulo Malhães. Eles "foram responsáveis pelo planejamento e execução de uma megaoperação em inúmeros pontos do país para liquidar, a partir de 1973, os militantes das várias tendências da Ação Popular (AP), movimento de esquerda ligado à Igreja Católica". Entre os mortos estavam Fernando Santa Cruz Oliveira e Eduardo Collier Filho, além de alguns militantes da Ação Popular Marxista-Leninista (APML), dissidência da AP.
Como se vê, são agentes que atuaram para o regime militar (admirado por Bolsonaro) que contradizem o presidente. Com detalhes e confissões. Bolsonaro não contraria apenas a versão de seus camaradas de armas. Muitos militares graduados enxergam no gesto do presidente uma total inconveniência politica, ao ressuscitar um debate sobre a guerra suja que eles mesmos gostariam de ver sepultado.