Tradicionais de todos os anos, os reajustes salariais de trabalhadores também estão lidando com a inflação de dois dígitos. Recentemente, o boletim Salariômetro da Fipe mostrou que, depois de muito tempo, o Rio Grande do Sul teve um mês sem nem reposição do índice, depois de já ter parado de dar ganho real. Quem tem entrado com mais força na mediação das negociações é o Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT4). Em 2021, foram 44, contra 19 de 2020. Ou seja, um aumento de 130%, mais do que dobrou. O programa Acerto de Contas, da Rádio Gaúcha, entrevistou o novo presidente do tribunal, o desembargador Francisco Rossal de Araújo. Confira:
Como o tribunal está trabalhando os reajustes neste cenário de inflação?
Nós temos uma preocupação sempre com a reposição dos salários porque somos uma justiça social. Mas também temos uma preocupação com a viabilidade econômica das empresas. Porque, sem empresas fortes e com viabilidade econômica, nós não temos empregos saudáveis, duradouros, que recolham também para previdência social e deem uma maior garantia para os trabalhadores de estabilidade econômica. Então, o Tribunal Regional do Trabalho, uma das suas principais atribuições é a negociação coletiva. Hoje, somos a casa onde podem se encontrar as categorias representantes dos trabalhadores e dos empregadores, e podem sentar à mesa de negociação, caso a negociação direta entre eles não tenha sido exitosa. Essa é nossa vocação na Justiça do Trabalho. Qual é o grande desafio? Com a pandemia, há reflexo no mundo inteiro, quando se emite moeda demais, se gera inflação. Isso tem distintas características em cada um dos países. Nós acompanhamos uma escala nos índices inflacionários nos últimos anos, e isso repercute diretamente nas negociações coletivas, porque a primeira pauta dessas negociações é a reposição da inflação nos salários. Dito de outra maneira: os salários vão perdendo poder de compra, no final de uma data base, que pode ser de um ou dois anos, os trabalhadores negociam a recomposição do poder de compra via a reposição dos índices inflacionários. Quando a situação econômica é favorável, se recompõe inclusive acima dos índices inflacionários, que nós chamamos de aumento real. Infelizmente, desde o ano passado, nós vínhamos observando — e eu vinha alertando as categorias nas mesas de negociação — que uma coisa era repor índices de 2%, 3%, que eram os que estávamos acostumados, mas repor índices na casa de 8%, 9%, 10%, requer uma programação, um esforço e uma recuperação da economia muito grande, e o que estamos vendo é que as categorias não estão conseguindo a recomposição. A consequência prática disso é que diminui o poder de compra dos salários, se retrai a atividade econômica, porque os salários são a grande forma de distribuição de renda, isso gera menos consumo, menos produção, e vai se repercutindo isso tudo em um ciclo vicioso. O nosso grande desafio é quebrar esse ciclo e fazer com que essas negociações possibilitem, primeiro a recomposição do salário, a retomada do crescimento econômico, uma realidade mais sadia.
Veja entrevista em vídeo:
Como vocês conduzem isso considerando a conjuntura de agora?
Em primeiro lugar, nós fixamos a porta de entrada. A sociedade precisa saber em que porta bater. Isso aconteceu com a pandemia. Curiosidade, as negociações durante a pandemia foram mais provocadas pelos empregadores do que pelos empregados, porque não sabiam o que fazer. As questões de distanciamento, uso de máscara, álcool gel, elas necessitam de uma especificação, porque cada categoria tem características tão especiais que precisa fazer a negociação muito particular. Então, em primeiro lugar, se fixou a Justiça do Trabalho como o local onde essas soluções iam sendo buscadas pouco a pouco. E nós fizemos uma espécie de banco de soluções. Isso acelerava as negociações coletivas. Ou seja, o que nós encontrávamos no setor coureiro calçadista que pudesse ser adaptado no setor metalúrgico, por exemplo, nós íamos uns ajudando os outros. As soluções encontradas para uns, adaptadas, iam sendo colocadas nas mesas de negociação. Então, hoje as principais categorias econômicas vêm na Justiça do Trabalho quando não se acertam e já têm o costume de negociar. O que buscamos em um segundo momento é estabelecer a especificidade. Algumas categorias tiveram ganhos com a pandemia. Então, essas categorias procuramos buscar por aumentos de inflação e acima de inflação. Mas para isso, usamos dados econômicos. Ou seja, o mediador tem informação, tem capacidade e domínio do setor econômico. Porque não pode conduzir negociação simplesmente achando um ponto médio entre a proposta de um e de outro. É um ponto médio, mas mais qualificado. Eu sei, por exemplo, que no setor de metalurgia, especificamente na empresa X, houve um ganho acima da inflação. Portanto, essa empresa terá que apresentar uma proposta condizente. Em compensação, do lado, um setor de serviços, por exemplo, tem ganhos abaixo de inflação, então com esses, buscaremos outras formas de negociar. Às vezes, é um abono, sem repercussão salarial. Aí são questões técnicas. Por exemplo, às vezes eu não consigo dar a recomposição da inflação no salário, mas dou um índice melhor no vale alimentação, que é uma parcela importante para grande maioria dos trabalhadores. Ou seja, vão se buscando soluções caso a caso, e para isso é preciso de um mediador qualificado.
O que é, nessa negociação, obrigatório à empresa?
No campo da negociação coletiva, a liberdade é muito ampla. Não há obrigação. A lei não obriga repor a inflação. As empresas repõem a inflação, dão aumento de salário, dão, inclusive, participação dos lucros, porque o incentivo via salário aumenta a produtividade. Em uma negociação, a empresa não é obrigada a dar vale alimentação, mas por que elas fazem isso? Porque trabalhadores mais satisfeitos trabalham melhor, aumentam o potencial de ganhos da própria empresa. Então, em princípio, o campo da negociação coletiva é de extrema liberdade. Não há, como havia no passado, uma escala móvel de salários em que se era obrigado a repor a inflação. Tudo depende do bom senso das categorias. É claro que, no meio disso, temos categorias organizadas, que vão à greve, que fazem outras reivindicações, mas nós, basicamente, iniciamos confiando no bom senso e na tradição que, nas categorias mais organizadas têm de negociação coletiva.
Imagino que a condução de uma audiência seja nessa linha?
Exatamente. O juiz que faz a mediação não é o que julga um processo. Ele conduz, com sua experiência, com informações técnicas, com capacidade de empatia. Para tu teres uma ideia, ano passado, no auge da pandemia, aumentamos em 118% o nível das mediações na justiça do trabalho. E aumentamos, inclusive, o nosso nível de acordos, que está na casa de 80%. O que é um feito notável, principalmente considerando as grandes dificuldades econômicas que o país, as empresas e empregados passavam.
Sobre o passaporte vacinal. Houve, por muito tempo, o entendimento de que as empresas poderiam exigir, isso estava até relativamente pacífico. Aí, depois, nós tivemos a publicação por parte do governo federal de uma norma afastando essa possibilidade. Ouvimos, inclusive, o Ministério Público do Trabalho sobre isso, que manteve a posição de que as empresas podem exigir o passaporte vacinal dos seus funcionários, inclusive orientou que exigissem, mesmo com a norma federal. Na ocasião, fiquei curiosa para saber como isso iria se portar, depois, nos tribunais. Como estamos em relação a isso?
Nós temos uma linha de atuação que é seguir as ações que foram julgadas no Supremo Tribunal Federal. Tem duas ações diretas ainda sobre os temas iniciais que dão as diretrizes nesse tema. Basicamente, ninguém pode ser compulsoriamente forçado a se vacinar. Quando eu digo compulsoriamente, é com atitudes físicas. Eu não posso pegar o braço de uma pessoa e vaciná-la contra sua vontade, porque isso fere um direito fundamental. Entretanto, diz o Supremo, a pessoa que voluntariamente se recusar a tomar a vacina poderá sofrer sanções indiretas, entre elas, sanções administrativas, inclusive trabalhistas. Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que essa posição do Supremo Tribunal Federal não é de hoje. Ela vem desde os anos 1970, quando foi feito o primeiro plano nacional de imunização, que já era assim. Nunca ninguém foi obrigado a se vacinar, mas quem não se vacina pode sofrer sanções. Como, por exemplo, uma lei antiga dos anos 1980 dizia que as pessoas não poderia receber empréstimos de instituições públicas pelo fato de não estar vacinado. Então, essa concepção é do Supremo, e que o judiciário, por ser uma ação de repercussão geral, é obrigado a chancelar. É claro que eu sei que é um assunto polêmico e que trará muitas nuances. Por exemplo, o trabalhador poderá ser despedido, mas a questão é se ele poderá ser demitido com ou sem justa causa. Isso está em aberto. Em princípio, a minha posição particular, é que ele possa ser despedido, mas sem justa causa. Poderá ser despedido, não será discriminatória, porque a empresa também precisa zelar pela saúde de todos.
A norma do governo federal deixava uma brecha em relação a isso...
Exatamente, por isso que ela é tão polêmica. Qual é a regra geral? É que a vacina não é uma atitude pessoal, e sim coletiva. Estamos vendo os efeitos da vacinação, o bem que ela traz em termos coletivos. Então, quando eu não me vacino, não é só uma questão pessoal, eu me torno um vetor de transmissão da doença muito mais provável do que uma pessoa vacinada. Então, não se vacinar é uma decisão individual, mas que também afeta o coletivo. E é preciso que o judiciário tenha esse equilíbrio. Que temos que pensar sempre primeiro no bem da sociedade como um todo, para depois pensar no bem individual. É assim que se vive numa nação civilizada. Eu acredito que o judiciário vai saber conduzir essa questão dentro dessa pauta, respeitando o direito individual, mas a prevalência do direito social.
Por que sua posição de que a demissão seria sem justa causa?
É por conta do direito da pessoa de receber as parcelas indenizatórias. Porque reservamos o conceito de justa causa para aquelas situações mais graves, como um furto, violência física no ambiente da empresa, etc., e aí — não falo em nome do Tribunal, mas sim pessoalmente — eu permitiria a dispensa, mas seria sem justo motivo, com direito às indenizações respectivas. Mas ressalto que isso é um tema polêmico, e aí, sim, teremos que aguardar a palavra final dos tribunais, por uma questão de proporção.
Coluna Giane Guerra (giane.guerra@rdgaucha.com.br)
Colaborou Daniel Giussani (daniel.giussani@zerohora.com.br)
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