Discursar que a crise ensina mais do que qualquer coisa, que nos deixa fortes e que - apesar de ruim - até é boa deve ter alguma intenção motivacional por trás. Para si mesmo e para os ouvintes. Porque não há lado bom no que está acontecendo. E muito menos algo a comemorar.
As pessoas e empresas costumam aprender no sofrimento, sim. Mas também ficam com sequelas que não precisavam ter. É possível aprender também ao encarar novos concorrentes, com consumidores mais exigentes e com as revoluções próprias que desafiam periodicamente cada setor específico. Não precisamos de uma crise econômica sem precedentes provocada por um vírus que está matando tanta gente para aprender a inovar.
Acelerou processos que se arrastavam? Com certeza. Empresas que estão vendendo pela internet, por exemplo, dizem que avançaram cinco anos em cinco semanas no seu negócio. Também há uma seleção - não tão natural assim - que abre espaço maior de mercado para quem corre na frente e é mais eficiente. Ainda forma pessoas mais resilientes que passam a carregar a experiência de uma grande crise para facilitar a enfrentar outras futuras. Aliás, exemplos desses são frequentemente destaque aqui na coluna desde março ainda para que inspirem outros leitores a ainda lutar, criando a sua própria solução ou copiando mesmo e tudo bem.
Mas não há discurso motivacional que apague todos os empregos que ficam pelo caminho. Toda a ansiedade da família que está sem renda, mas com os boletos chegando. Que amenize a tristeza do empresário que está encerrando as atividades do seu negócio, mas busca empréstimo para pagar direitinho as verbas rescisórias dos funcionários. E, mais do que tudo, não tira a dor de quem está perdendo pessoas queridas para o coronavírus.
Fora que diversos indicadores já nos mostram que os mais vulneráveis estão sofrendo mais, aumentando o abismo social. Os microempresários enfrentam têm mais dificuldade para acessar o crédito do governo federal, o emprego informal foi o mais atingido, mais de 1 milhão de empregados domésticos com carteira assinada foram dispensados, famílias mais pobres relatam impacto maior na renda do que a classe A e, já projetando o que acontecerá no futuro, o ensino a distância não funciona do mesmo jeito na rede pública do que na privada.
Então, não. Não precisamos de crise alguma e muito menos uma como essa para evoluirmos. Ela está aí e precisamos enfrentá-la da melhor forma, claro. Mas sem romantizar. Até mesmo por respeito.
Colunista Giane Guerra (giane.guerra@rdgaucha.com.br)
Colaborou Daniel Giussani (daniel.giussani@zerohora.com.br)
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